Mylla Fox compôs o Júri da Crítica do 15º For Rainbow – Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual e de Gênero com Arthur Gadelha e Rodrigo Passolargo. Confira o prêmio.
Depois de mais ou menos um ano e meio de isolamento social em decorrência da pandemia de covid-19, há de se concordar que simplesmente ter a possibilidade de voltar aos eventos presenciais já seria uma experiência arrebatadora por si só. Entretanto, sendo esse evento a 15ª edição do For Rainbow - Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual e de Gênero, que trouxe esse ano o tema “15 anos, vivas!”, acrescentou novas camadas de significado e propósito a esse acontecimento.
Em meio a tantas tragédias e notícias devastadoras, foi absolutamente indescritível a sensação de ver a pluralidade da nossa pulsante comunidade não só na plateia e nas diferentes expressões artísticas abarcadas pelo festival, como nas telas também, durante as mostras competitivas nacional e internacional de curtas e longas-metragens. Talvez por conta disso, os filmes documentais tenham sido os que mais mexeram comigo.
O filme de abertura do evento, Transversais, é o primeiro longa do cineasta Émerson Maranhão, mas foi pensado originalmente para ser uma série de TV, sofreu censura e foi cortado do edital da Ancine em que era finalista pelo Governo Federal que chegou a anunciar publicamente que “não tinha cabimento fazer um filme com este tema”. A solução de Maranhão e Allan Deberton, diretor do premiado Pacarrete, que assina a produção, foi transformar o formato do projeto e procurar outras formas de financiamento, via Lei Aldir Blanc, no Ceará.
Em Transversais (2021), acompanhamos a história de quatro pessoas trans: Dan Kaio Lemos, Coordenador Nacional do Instituto Brasileiro de Masculinidades (IBRAT) e Doutorando em Ciências Sociais (UNB); Samilla Marques, funcionária pública; Érikah Alcântara, professora de matemática e Caio José, enfermeiro socorrista. Indivíduos de lugares distintos que compartilham suas memórias, descobertas e vivências únicas em entrevistas e registros do cotidiano. Além dos protagonistas, também contamos com os depoimentos de seus familiares, montando um mosaico de experiências e pontos de vista acerca da experiência trans em diferentes recortes, como o de Mara Beatriz, que se tornou militante do grupo Mães pela Diversidade depois que Lara, sua filha, se descobriu transgênero.
A meu ver, o grande acerto de Transversais é mostrar que há exemplos de experiências trans que não são pautadas no trauma. O Brasil é o país que mais mata travestis e pessoas trans no mundo, é natural que as representações trans frequentemente tenham um caráter denunciativo. Então, não deixa de ser um alívio ver narrativas que tenham um tom otimista nesse sentido. O sentimento de leveza e acolhimento que o filme transmite e transborda têm um quê de esperança em dias melhores. Não haveria filme melhor para abrir um festival tão cheio de vida.
Seguindo nessa mesma linha de filmes que colocam um sorriso involuntário no seu rosto, temos o curta Pokett Nery - Rainha do Samba Junino (2021), de Fabrícia Aquino Coelho. Nele, conhecemos a trajetória de uma das dançarinas mais conhecidas da tradição junina da capital baiana enquanto a acompanhamos durante os preparativos de mais uma apresentação. Confesso que fiquei totalmente fascinada pela pessoa Pokett Nery, com seu carisma e magnetismo que saltam aos olhos. Mas, mais impressionada ainda, eu fiquei com sua história de vida, de luta, sim, mas também de muita garra e muito sucesso. Eu que só vim conhecer e entender melhor o samba junino através do curta, amei a posição de destaque que a performer ocupa, muito merecidamente e com a elegância que se espera de uma verdadeira rainha, diga-se de passagem, abrindo portas e incentivando novas gerações de sambistas, seja trans ou cis, como é o caso de Tininha, mulher negra e gorda, rainha do samba do morro. Além de Tininha, temos depoimentos de Jujuba, outra sambista e todas as pessoas próximas e profissionais que se movimentam e se articulam em volta dela e da manifestação popular.
Mesmo nas cenas em que os ensaios ficam mais aparentes, Pokett Nery não perde o rebolado e não deixa o samba morrer, na verdade ganha ainda mais vida quando olha para a câmera e nos convida para a conversa, compartilhando conosco que está nervosa para a apresentação que está sendo organizada, que vai ser remota, já que a história se passa durante o contexto pandêmico. Nada consegue ofuscar o brilho desse curta documental.
Depois de cinco dias de exibição, Assim Como o Ar, Sempre nos Levantamos, de Clara Angélica, encerrou a mostra competitiva de longas-metragens. O documentário é o resultado de um esforço coletivo e registra, em torno de seus 70 minutos, uma miríade de famílias e casais LGBTQIA + de diferentes recortes sociais e identitários, tendo como ponto de partida o resultado das eleições de 2018, retratando suas angústias, medos e suas histórias de vida, amor e de luta, interseccionalizando temas como religião, direitos e política.
É interessante como, por meio de seus contrastes e até mesmo por meio de imagens de arquivo de matérias jornalísticas, a montagem de “Assim Como o Ar…”, nos lembre a todo momento das diferentes posições que ocupamos na sociedade, embora compartilhemos de tantas coisas em comum. Em dado momento, a montagem inclusive nos chama para a luta, nos tira de uma posição confortável e emocionada e reforça que apesar das vitórias que já conquistamos, ainda há muito o que reivindicar. Essa mensagem toma ainda mais potência quando nos deparamos, por exemplo, diante de histórias impactantes e dolorosamente absurdas como a do filme alemão Instruções de Sobrevivência, de Yana Ugrekhelidze, ganhador do Prêmio do Júri Teddy em Berlim, também exibido durante os dias do For Rainbow, que acompanha a vida de Alexandre, um homem trans que vive uma vida secreta em sua terra natal, a Geórgia, com a esposa Marie há mais de sete anos porque o gênero em seu passaporte não é retificado. Embora, é claro, não seja necessário ir muito longe, tendo em nosso território nacional casos de violência contra pessoas trans igualmente revoltantes.
E que bom que o longa de Clara Angélica nos lembra disso. Me questiono se não seria justamente esse o papel social de um festival como o For Rainbow, para além, é claro, do objetivo óbvio de servir de janela cultural, o evento serve também como um instrumento de conscientização e por que não? de articulação popular. E Assim Como o Ar, Sempre Nos Levantamos nos diz acertadamente que não podemos esquecer jamais, não podemos nos acomodar e descansar com os direitos que já conseguimos, ainda tem muito chão pela frente para percorrer, não podemos voltar para o armário.
Para as pessoas trans, ser visto é importante. Ser visto sorrindo, amando e sambando então, é essencial. O sentimento que fica, pra mim, é de ter em cada um desses rostos como um respiro, uma ponta de esperança, um combustível para que nos mantenhamos firmes. Não estamos sós, estamos presentes e precisamos continuar resistindo, por todes es que ainda não podem ser livres, precisamos lutar por elus, estamos juntes, estamos vives.
Mylla Fox é formada em Cinema e Audiovisual e trabalha como roteirista, assistência de direção e produção. É podcaster e produtora de conteúdo do site de cinema e cultura pop, Só Mais Uma Coisa. Foi convidada pela Aceccine para integrar o Júri da Crítica no 15º For Rainbow
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