Thiago Henrique Sena compôs o Júri da Crítica do 20º Noia - Festival do Audiovisual Universitário com Beatriz Saldanha e Eric Magda. Confira os filmes premiados aqui.
A 20ª edição do Festival do Audiovisual Universitário NOIA é marcada pela execução do cinema em tempos de pandemia. Esse talvez seja o mote principal que gira em torno do cinema feito por estudantes no Brasil. Não por menos, a pandemia da COVID-19 fez com que o mundo refletisse sobre muitas coisas e o cinema não está à parte disso. Esse contexto repercute nos filmes escolhidos pela curadoria, seja pelo número baixo de inscrições ou por reforçar certas desigualdades e estereótipos do nosso país. Dito isso, fica aqui o profundo respeito e admiração aos estudantes que produziram e produzem cinema durante os últimos anos. Se de um lado tem uma pandemia que dizima uma população e escancara os abismos sociais do Brasil e um Governo Federal que desde 2016 sucateia e censura toda forma de fazer artístico, por outro tem a coragem e a vontade de sobreviver que se manifesta por meio da arte. Sendo assim, todo fazer artístico é resistência.
A predominância dessa edição do Noia foi de filmes que retratam muito o lado intimista e de como a COVID-19 se manifestou nas vidas das pessoas, buscando as mais variadas repercussões que iam desde o luto até adaptação à vida remota. Contudo, o traço ainda mais forte entre esses filmes é o caráter experimental de linguagem e de contar histórias. Ao longo dos 30 curtas-metragens, 20 da Mostra Nacional e 10 da Mostra Cearense, esse aspecto se mostrou repetidas vezes, muitas com uma boa execução da linguagem cinematográfica e outras com uma certa falta de acuidade necessário para finalização de uma obra. Nesse recorte, filmes das mais variadas regiões do país fizeram parte dessa exibição. E é sobre algum deles que esse texto se deterá a partir de agora.
Dentro da Mostra Nacional, destacam-se Madeira de Lei e O Último Cinema de Rua. O primeiro, dirigido pela Kalor Pacheco, mostra uma introspecção familiar. Esse sentimento se deu principalmente pela situação que a COVID-19 se instalou no país. Nele, o espectador é convidado a conhecer um pouco da relação da realizadora com sua família, bem como repensar relações sociais exploratórias inerentes ao Brasil e a forma como sua sociedade foi estabelecida ao longo do período de colonização, com extermínio em massa da cultura e da vida dos povos originários e com o terror e a dor da escravidão negra. Esteticamente, o filme apresenta vários recortes e recursos bem empregados e com um ritmo que não chega a ser um problema. Em determinadas partes a narrativa se torna bem emocionante para aqueles que assistem.
O Último Cinema de Rua de direção de Marçal Vianna escancara um outro olhar que a COVID-19 deixou vulnerável: a situação de artistas e de salas de exibição que não se concentram em centros comerciais. Partindo de uma premissa também bem intimista, o filme faz duras críticas ao sucateamento e esvaziamento das salas de cinema de rua, cultura reforçada pelas grandes majors e os grandes circuitos exibidores e distribuidores de cinema. Esse pensamento vai através, inclusive, de uma política de elitização dos espaços e de negação a cultura. Afinal, como dizia Paulo Freire, quando o ser humano compreende sua realidade é que possível procurar soluções e levantar hipóteses de como mudar.
O cinema como objeto de arte tem papel fundamental no entendimento da realidade brasileira, principalmente quando feito com uma postura crítica e não subserviente aos interesses políticos e partidários de uma elite de extrema-direita, que infelizmente vem guiando os rumos desde 2016.
Além do filme vencedor, o curta Entre Passado, de Larissa Estevam, que alia um bom aspecto de direção e de narrativa ao gênero ficcional, a Mostra Cearense também tem como destaque o filme À Deriva de Isaac Morais que propõe um olhar interessante sobre a cidade de Fortaleza e apresenta uma montagem que reforça esse caráter experimental da obra.
20ª edição do Festival do Audiovisual Universitário NOIA é resistência, assim como o cinema universitário do Brasil. Em um ano que se alcançou a triste marca de mais de 600 mil mortos pela pandemia de COVID-19 e que se enfrentou um sucateamento e desmanche das políticas públicas, participar de um festival que fomenta a cultura e o fazer artístico, além de promover debates e propor soluções, é sem dúvida resistir ao obscurantismo e à política de extermínio da extrema-direita brasileira.
Fica aqui o agradecimento à produção do NOIA, aos curadores, às equipes de filmagens e a todas e todos que ajudaram a construir esse festival e essa premiação.
Parafraseando Freire: Filmar é um ato de amor, e por isso um ato de resistência e de coragem. Um viva ao cinema cearense e ao cinema brasileiro.
Thiago Henrique Sena é formado em Letras e em Cinema pela UFC. Escreve para o site Só Mais Uma Coisa sobre cinema e jogos e é vice-presidente da Associação Cearense de Críticos de Cinema – Aceccine
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