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  • Beatriz Saldanha

20º Noia: Cidades-fantasma e os reflexos de um cinema pandêmico

Beatriz Saldanha compôs o Júri da Crítica do 20º Noia - Festival do Audiovisual Universitário com Eric Magda e Thiago Henrique Sena. Confira os filmes premiados aqui.

Foi com muita alegria que aceitei a tarefa de compor o júri do 20º Noia - Festival do Audiovisual Universitário, uma edição tão especial de um festival que há anos vem estimulando a produção de jovens cineastas e que já tem uma forte tradição na cidade. Assinada por Doug de Paula, Isaac Martins e Kamilla Medeiros, as mostras nacional e cearense tiveram em comum diversos filmes que são um rescaldo da produção pandêmica, com características que certamente persistirão por algum tempo, visto que os sets de filmagens têm sido retomados paulatinamente e que a pandemia ainda não chegou ao fim, o que pode voltar a interferir no curso da feitura de novos filmes.


Com a prerrogativa de poder tratar de qualquer tema que escape à pandemia pelos modos de produção distintos do filme em live action, as animações estiveram focadas em algumas desventuras do mundo animal e também se destacaram na programação. Irreverente, Cenas da Infância, de Kimberly Palermo, conta a história de um ratinho cujo mundo de fantasia vai por água abaixo após testemunhar seus pais praticando sadomasoquismo. Já Miado, de Victória Silvestre, é sobre um gato de asilo que se revolta contra uma velhinha e arquiteta sua morte, mas acaba trocando de corpo com ela. Paloma, de Alex Reis, é a tragicômica história de uma pomba habitante do centro de São Paulo que desenvolve consciência depois de engolir o chip de um cartão. A versão funk de “Cucurrucucu Paloma”, que embala o filme, foi uma divertida surpresa.


Fora as animações, a comédia esteve representada no curta-metragem, Azul Piscina, de Pedro Fagim, sobre um comprador de calcinhas usadas que descobre que os produtos que ele adquire não vêm exatamente de onde ele esperava. Engraçadíssimo e com um ritmo excelente, o final do filme tem o sabor das pornochanchadas dos anos 1980. Uma espécie de versão macabra de Alice no País das Maravilhas, o ótimo Estilhaços, de Gabriela Nogueira, foi o único filme de horror da edição. O curta narra a história de uma jovem mergulhada na loucura que tem visões de um coelho sinistro, simbolizando os traumas e as dificuldades da passagem da adolescência para a vida adulta.


Boa parte dos curtas-metragens da seleção utilizaram o recurso da narração sobre imagens de arquivo pessoal ou filmagens, uma solução prática em tempos pandêmicos e que certamente foi uma das marcas mais recorrentes da produção realizada neste período de condições adversas. O desktop drama Maresia, com quase vinte minutos de uma discussão entre um casal, atingiu camadas mais profundas ao optar por utilizar em justaposição imagens do passado do casal, gerando um ruído instigante entre o que mostram as imagens e a situação que as duas estão vivenciando naquele momento.


Os documentários, algumas vezes híbridos no formato, marcaram presença na edição, trazendo tópicos urgentes como a necessidade da reestruturação dos espaços de esportes e lazer nas cidades (Ladeira não é rampa), a agricultura do ponto de vista de mulheres de diversas partes do país e de diferentes contextos socioeconômicos (Meu arado feminino), uma denúncia-apelo sobre a ausência de cinemas populares e a dominação dos multiplexes e seu sistema excludente (O último cinema de rua), relatos de pessoas em situação de rua no contexto da pandemia e como elas deveriam ser assistidas pelo governo (Muito além do papelão), entre outros. Destaque para o documentário Anhangabaú, que conta, através de algumas intervenções poéticas, como o rio oculto embaixo da cidade assombra os entornos do Vale do Anhangabaú. O curta apresenta um excelente trabalho de recuperação de arquivo e reimagina cenários estéreis como fachadas de prédios e lugares vazios por um ponto de vista fantasmagórico.


Curtas-metragens sobre a relação das pessoas com os espaços públicos e privados, aliás, foi uma pauta frequente nesta edição do festival. Sintomático, curto e direto em seu discurso, é feito em primeira pessoa e fala sobre a falta de identificação da cineasta com a cidade em que mora no Rio Grande do Sul, marcada por uma história tenebrosa de nazismo. Arquitetura do gesto traz um poema narrado em off e estabelece um paralelo da cidade fantasmagórica com as pessoas: “dentro de mim existe uma cidade vazia igual”. Os traumas e a sensação de não-pertencimento gatilhada pela pandemia também aparecem no experimental À deriva, que, através de uma montagem dinâmica, mostra uma pessoa chegando aos lugares que costumava frequentar, como o Dragão do Mar e o Parque do Cocó, e dando de cara com os portões fechados, inacessíveis. Eloquente na opção de não utilizar diálogos, reflete sobre a solidão pandêmica sem ser didático.


O gosto que fica, ao final da seleção, é que em geral os filmes abordaram uma sensação generalizada de despedida de um mundo que não conhecem mais, como em Rua Justiano de Serpa, 433, em que uma moça se despede do apartamento em que viveu e do qual não tinha qualquer registro audiovisual, e Rádio capital alvorada, sobre uma tradicional rádio que está fazendo sua última transmissão. É um sabor agridoce de adeus ao passado, de boas-vindas a um processo de cicatrização das feridas de um ano cheio de privações e um algum entusiasmo com o que está por vir.

 

Beatriz Saldanha é crítica, curadora, pesquisadora e realizadora. Doutoranda em Comunicação Audiovisual com pesquisa sobre horror francês, mantém a revista eletrônica Les Diaboliques, onde escreve sobre filmes do gênero.

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