Os três contos que compõem o novo filme de Ryusuke Hamaguichi arrebataram o Grande Prêmio do Júri no Festival de Berlim 2021, trazendo em todas elas o protagonismo feminino sempre em disputa com outro protagonismo: o próprio destino.
Amigas dentro de um triângulo amoroso. A aluna numa inusitada abordagem ao seu professor. Duas mulheres num encontro desacertado (ou não). Provavelmente você já passou ou soube de histórias assim na vida real, mas o que Ryusuke Hamaguichi oferta são essas mesmas identificações com um tempero especial.
Primeiro ponto é a incrível construção de personagens. Em todos os contos há um trabalho competente de desenvolvimento dos personagens que não se restringe às protagonistas: todos os personagens despertam uma imensa curiosidade sobre o que farão dentro daquela engrenagem de situações colocadas na tela. A organicidade dos diálogos, as expressões, o tempo para cada cena tendo como o epicentro do espetáculo a “pessoa”. Nós humanos contamos histórias sobre muitas coisas, mas somente contamos histórias para um único espectador: nós mesmos.
Na inserção desses personagens, todos seguem alguns padrões ambientalizados que Ryusuke extrai da sua cultura nipônica: uma romantização literária do omotenashi - tal expressão significa uma espécie de disposição em recepcionar, receber, tratar bem com cortesia e bom coração. Em todas as narrativas, o diretor recebe o Destino sempre com omotenashi, por mais improvável que se torne (ou se torna improvável justamente por isso). Essa porta de entrada é o que entrelaça mais ainda os fios invisíveis que ligam as pessoas. Não necessariamente precisam ser os mesmos fios vermelhos que os japoneses chamam de Akai Ito ou “Fios Vermelhos do Destino”, por onde as almas gêmeas estão ligadas. Mas os fios narrativos, de diversas cores, formas e nós.
Os cento e vinte minutos de filme discorrem de maneira tão sutil e rápida que mais parecem irônicos Haicai, poemas curtos de cunho cômico que falam essencialmente sobre cotidiano.
Mas se tudo acontece ao seu tempo, qual “tempo” o filme se conceitua? Ou melhor, ao “seu” tempo, na propriedade de quem, já que a hipoteticidade nos tira tal posse? Se existem leis naturais que tecem a comicidade dos encontros, quem as rege? Não que o filme faça a pergunta e muito menos anseie uma resposta. As pessoas são, estão e as situações tornam-se. Assim nasce a jocosidade do acaso.
Mas se fôssemos significar a simplicidade do acaso das três histórias aos moldes dos signos e deidades que o nipônico faz na história, o filme transitaria como uma sátira para saber em qual colo de um dos Sete Deuses do Destino seus personagens cairão, tornando-os quase aspectos de nossas reações diante do inesperado. Se na delicadeza (Benzaiten), no calor (Bishamonten), no sucesso (Daikoku), na sinceridade (Ebisu), na sabedoria (Jurojin), na generosidade (Hotei), da felicidade (Fukurokuju). Ou se eles simplesmente nos deixam escapar por suas mãos. Essa é a Roda do Destino e em sua ciranda nós estamos no jogo das cadeiras.
Ryusuke Hamaguichi nos habitua que a Coincidência é o nome que o Destino dá ao brincar com nossas Providências.
Rodrigo Passolargo é roteirista, escritor, produtor cultural cearense e crítico de cinema. Formado em Economia e graduando em História, com pesquisa voltada ao regional nordestino, cultura popular e armorial.
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