Publicado pela Autora no site Uma Mulher com Uma Câmera
O ser humano está envolvido em diversas questões éticas e morais que possuem a capacidade de afetar a vida ao seu entorno. Vemos muitos filmes que trazem personagens que possuem valores distorcidos e que agem no mundo a favor dos seus ideais. Muitos expõem sua verdadeira face, outros a escondem. É pensando neste assunto que iremos discutir um pouco sobre o impactante filme "Rainha de Copas" (2019) da diretora May el-Toukhy.
"Rainha de Copas" é uma daquelas obras que nos intriga e nos envolve ao mesmo tempo. Acompanhamos Anne, uma advogada bem sucedida que trabalha em casos de jovens vítimas de abuso. Ela tem uma vida invejada por muitos, mora em uma enorme casa com suas duas filhas gêmeas e seu marido Peter. O médico é uma figura viciada no trabalho e tem um filho de um relacionamento anterior, Gustav, um adolescente problemático que vai passar alguns dias com o pai, na possibilidade de se mudar para lá. Neste período, Anne se aproxima de Gustav para fugir da monotonia. Assim, os dois se envolvem e vivem uma relação secreta e conturbada.
O cenário do filme é encantador por conta das paisagens rurais, as imagens dos rios e da natureza, e por mais contraditório que seja essa relação, o quadro traz uma atmosfera romântica e ao mesmo tempo mórbida para a tal relacionamento. E de certa forma, por alguns minutos esquecemos a atitude imoral da protagonista e nos solidarizamos por suas questões. Anne, por mais perfeita que pareça sua vida, se mostra uma mulher solitária e infeliz. É diante daquela aventura que ela revive sentimentos que havia esquecido e que foram resgatados do seu tempo de juventude.
O filme também revela as hipocrisias da classe burguesa, que se veste da máscara da perfeição e da boa conduta. Isso é bem claro quando percebemos como o casal feliz se comporta. Anne e Peter gostam de luxo, de fazer festas e de manter seu status de família bem-sucedida. Porém, na verdade tudo não passa de um jogo de aparências de uma sociedade que rotula os indivíduos. O casal procura se encaixar no que esperam deles, já que muitos pensam que duas pessoas profissionalmente realizadas seriam simultaneamente felizes em todos os outros campos da vida.
Mas afinal, Anne seria uma mocinha ou uma vilã? Esta não é uma questão que a realizadora busca responder. Não é seu interesse pontuar o bem e o mal. Ela opta por fugir da representação dos poderes de ordem binária trazendo personagens complexos e com múltiplas facetas. É interessante pontuar que o filme além de ter uma direção feminina, também foi escrito por duas mulheres, May el-Toukhy e Maren Louise Käehne e traz uma mulher madura como protagonista. Com isso não se pode deixar de lado a ideia do olhar feminino para com a temática, que neste caso opta por tirar o feminino do lugar da vitimização.
Nós, espectadores, somos conduzidos pela narrativa e podemos imaginar o que aquele envolvimento ocasionaria. Porém a diretora demonstra tanto controle em seu trabalho que tendemos a relativizar algo que seria inadmissível. Assim como a protagonista, caímos por terra ao perceber o quanto aquela atitude é irresponsável e que pode gerar consequências maiores na vida daquele garoto que está no início da vida. Mas Anne reconhece o seu erro e a contradição com aquilo que combateu durante toda sua carreira nos tribunais.
Por mais trágico que o filme seja, as ações dos personagens não seguem uma linha vingativa para estimular a trama. Há até um ato sugestivo de que Gustav viria a revelar tudo com uma prova em áudio, mas a diretora não aciona soluções fáceis e comuns para isso. O desenvolvimento é feito de forma mais realista e coerente com a realidade de alguém que é vítima de abuso.
Acompanhamos então a história de um amor estragado, sujo, que já começa com um fim. E onde a dinâmica entre os amantes se assemelha a um jogo de xadrez, no qual Gustav não tem a menor chance de vencer. Enquanto o rapaz seria um mero peão neste jogo, Anne seria a rainha de copas, se movimentando por todos os lados e podendo fazer o que quiser. Ela vive uma vida no escuro, guarda um segredo, e mesmo assim aparentemente não desmorona frente aos outros, aos obstáculos impostos a ela. Porém, sozinha diante do espelho, ela entra em um conflito moral consigo mesmo que afeta internamente suas estruturas e seu futuro. Ou seja, não podemos escapar da nossa própria consciência.
Raiane Ferreira é realizadora, montadora, critica e pesquisadora. É a criadora do canal Uma Mulher Com Uma Câmera, que busca refletir sobre as mulheres no cinema, tanto frente à câmera quanto atrás dela.
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