Texto por Rodrigo Passolargo
“Os dois mais puros sentimentos nossos
A saudade e o amor
As mais profundas
Das melancolias solidões da terra”
Foi assim que Gonçalves Dias categorizou a saudade em sua poesia no livro “Novos Cantos" em 1857: acompanhada de seu consorte Amor, nos derreios que cavam as entranhas da terra, as mesmas que semeamos em graça ou enterramos em exéquias.
Para dar vida ao seu sensorial documentário, o diretor Marcos Pimentel viaja do Brasil a Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde e coleta relatos que desabrocham flores e desvelam os ossos das memórias desse sentimento tão ambíguo que desperta a mais curiosidade de artistas e pensadores ao longo da humanidade.
São as iniciais imagens de grandeza da natureza que preparam o espectador para a vastidão que é a saudade. O mar que cerca até onde os olhos não alcançam se intercalam com os poucos elementos solitários ao redor. A nítida passagem temporal contada através do recorte vagaroso e os pequenos crustáceos em raros toques dão sentido às formas de distância. As lentes do diretor de fotografia Mateus Rocha transitam entre o minúsculo e o maiúsculo que exercitam as minúcias das lembranças e a extensão dos esquecimentos.
Submerge os personagens e suas histórias. Os novos corpos tomam o fôlego para respirar suas saudades. Ou transpirá-las. Abdel, Adelmisa, Huíla, Joana, Rodrigo, Rosângela e Zé Melo aparecem assim como os pequenos crustáceos à mercê do vastíssimo e à medida que suas narrações (e seus silêncios) vão se desenvolvendo, suas narrativas tentam preencher esse infinito. A saudade é um vazio cheio de tudo.
A prova que o ser humano nasceu com asas é a aflição natural em busca de um ninho. Os desafios de repensar os conceitos de pertencimento que somos de algum lugar ou de lugar nenhum sempre aportam nossas viagens em ilhas desconhecidas. Enquanto o mar for uma terrível solidão, não sabemos se nossa chegada é resultado de um acidental naufrágio ou precisa trajetória. Ou como nas palavras em “Espelho, espelho não meu” da escritora Eliane Brum: “Quando deixamos nosso mundo e partimos em direção a outros destinos, a primeira paisagem que nos espanta é a nossa própria geografia. (…) Podemos embarcar apenas em nossos próprios corpos”.
Entre aqui e lá, quem sabe seja esse “Entre-Lugar” que a personagem Rosânia sente entre as ruínas moçambicanas. Mais sobre sentir do que sobre estar. Para não cairmos nas armadilhas dos devaneios, Os Ossos da Saudade fixa o lado convencional do documentário através de certa personalidade aos sentimentos. A Saudade é lusófona como se remetesse ao lusitano Visconde de Almeida Garrett:
“É, porventura, o mais doce, expressivo e delicado termo de nossa Língua. A ideia, ou o sentimento por ela representado, certo que em todos os outros países o sentem; mas que haja vocábulo especial para o designar, não o sei de outra nenhuma linguagem senão da portuguesa.”
Coincidência ou não, encerro esse texto na cor da saudade que a personagem Huíla descreve: a cor do fim de tarde. Em memórias e esquecimentos imprecisos.
E no silêncio desse ponto final.
Os Ossos da Saudade estreou dia 22 de setembro nos cinemas e no streaming
Rodrigo Passolargo é roteirista, escritor, produtor cultural cearense e crítico de cinema. Formado em Economia e graduando em História, com pesquisa voltada ao regional nordestino, cultura popular e armorial.
Comments