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  • Daniel Araújo

Nomadland (2020): o filme como unidade primária do acontecimento

No Oscar 2021, o filme de Chloé Zhao venceu três estatuetas

Nomadland é um filme de personagem mas, ao mesmo tempo, não se limita a ser uma espécie de resenha investigativa das emoções de uma única figura. Isso é ótimo porque é uma decisão que não coloca a obra dentro de um circuito fechado que muito perigosamente tende a cair rumo a uma representação ilustrativa e pouco inspirada acerca do que realmente pode importar no exercício da cinematografia.


A contação da estória em si seria um desses elementos. Apesar de acompanharmos Fern (Frances McDormand) na sua jornada cortando os Estados Unidos da América em diferentes empregos por temporada, talvez o contato dela com todas as demais figuras que ela encontra pelo caminho seja o condutor primário da narrativa.


Essa dinâmica, à propósito, jamais soa piegas ou demasiadamente melodramática. Não é que tenhamos de ter pena ou devamos temer pelo o que pode ocorrer com a protagonista. Essa sequer chega a ser uma questão. Na verdade, essa atmosfera ultrapassa o conceito da arquitetura espetacular da cinematografia contemporânea.


Não é que nada deva acontecer. Mas a base do longa não se concentra em uma estrutura "apelativa" ou ultra expositiva. A noção do perigo ou da tragédia que definirá o curso de um ato, por exemplo, é colocada em terceiro plano. Ela se torna, na verdade, apenas uma sugestão. E o nosso olhar, enquanto espectadores viciados, é convidado a reimaginar essas estruturas.


Considerando a natureza de um filme, tudo bem se nada acontecer. A ideia do acontecimento, na verdade, diz muito mais respeito a algo inesperado. Para o cinema, esse é um tópico catalisador na dinâmica dramatúrgica. Aqui, o interesse de Chloe Zhao parece residir muito mais numa proposta daquilo que ocorre (ou não ocorre).


Se nada acontece, tudo ocorre. E para entendermos isso, temos de nos desprender da lógica desse cinema do extraordinário. Há sempre um lugar a ir, um objetivo a se buscar ou uma missão a ser cumprida. Deixemos isso de lado um pouco e pensemos. O que Fern quer é apenas viver a sua vida nos seus termos e nada mais.


Por isso, de fato, não faria muito sentido uma proposta narrativa espetacularizada e calcada em um modelo de situações ultra-apelativas. Nisso, o conceito do filme, ou seu sentido como nos ensina Eisenstein, se combina muito fluidamente com a própria ideação estética da obra. Os vários momentos de enlevo da protagonista endossam e reforçam essa razão de ser da natureza capturada pelas lentes do fotógrafo Joshua Richards.


Do mesmo modo, a noção de um final feliz dá espaço para uma teia de interpretação que nos leva a reconsiderar a necessidade de qualquer catarse climática da estória. Esse não parece ser um caminho que levaria à mensagem endossada por Zhao. Sabemos que o mundo não está bem e isso reflete esse "mal estar" humanitário que percebemos desde a primeira sequência do filme.


Isso é interessante porque, no fim, o filme não está encarregado de dar todas as respostas que a protagonista tenha de receber do mesmo modo que os espectadores ficam libertos desse arranjo autoexplicativo a que a arte, muitas vezes, independente da sua forma de ser, parece submetida.


Publicado pelo Autor no site Um Filme ou Dois

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