Crítica por Rodrigo Passolargo
Em 1883, o escritor Ignatius Donnely baseado nos relatos platônicos defendia em seu livro “Atlântida, um mundo antediluviano” que tal continente existiu e desapareceu nas profundezas do oceano junto com quase todos seus moradores diante de uma terrível convulsão da natureza. Platão, Donnely, Bacon e tantos outros relataram sobre tal catástrofe assim como o diretor Wolney Oliveira faz em “Memórias da Chuva”, documentário que teve sua estréia no Festival de Gramado, foi exibido em sua premiere alencarina no 33º Cine Ceará e vencedor do prêmio de Melhor Filme Júri Popular e Melhor Edição no 18º Fest Aruanda. A diferença de Wolney para seus clássicos antecessores é que os sussurros de sua narração são mais densos e nos aproximam da problemática e causa do filme, esta longe de ser a mesma dos atlantes. Porém, não menos catastrófica.
A rica pesquisa feita por Mayara Magalhães chega nas mãos da direção que protagoniza a visão que importa: o povo jaguaribarense do Brasil Real. As fortes imagens e documentos da migração do povo da cidade de Jaguaribara faz Memórias da Chuva ser uma nova e precisa escritura fílmica que denuncia o que não devemos desmemoriar: o abandono compulsório de lares para dar espaço ao açude Castanhão na esperança de amenizar - e até erradicar - o quadro da seca no Ceará. A condução criminosa num local onde a água é um desejo máximo necessidade sertaneja, vista como uma divindade que molha a terra e faz brotar a vida em verde.
Venderam uma utopia.
Uma utopia que, segundo Umberto Eco (2013, p. 102) “é etimologicamente um não lugar, embora alguns estudiosos definam o U como um eu grego e interpretam bom ou ótimo lugar. Mesmo Thomas More defendendo a palavra como ambígua, ainda sim tratamos de um país inexistente” A retroescavadeira social arrasta multidões - contra ou convencidos na sua vontade própria - para terras que parecem verdadeiros paraísos, mas que depois reconhecem-se como penumbras da realidade. Paredes brancas, ruas cinzas em linhas uniformes esticadas como a pouca manteiga que se espalha num enorme pedaço de pão, dissolvendo-se entre miolos insípidos.
O referido documentário cearense revela o jaguaribarense com o sofrimento de um Atlas Jandaial, destinado a carregar em suas costas o peso hercúleo de uma falsa terra mirabilia sem poder olhar para trás.
No Oriente Médio, há um conto popular intitulado “Ilusão Salutar” catalogado por Ahmed el Ibchihi e Rat. Nele é relatado que Sabur-dzul-Actâf adoeceu de saudades por conta do seu cárcere em Rum, o país dos Cristãos:
A filha do rei, apaixonada por ele (Sabur-dzul-Actâf), perguntou:
- O que desejas?
- Um gole d’água do rio Tigre (Ed Didijah) e o odor da terra de Istakhr!, respondeu o guerreiro.
Dias depois a princesa trouxe a água do Tigre e aspirou o cheiro da terra de Istakhr. E ficou bom.
(CASCUDO, Luís da Câmara. Superstições do Brasil. Global Editora. São Paulo, 2001)
Cascudo concluiu em comunhão da coleção de relatos pernambucanos e baianos “Superstições e Crendices”, recolhidas pelo Reverendo Rosalino da Costa Lima que, quando uma pessoa necessita mudar de um terra para a outra, leva consigo um pouco de areia para beber com água, a fim de combater doenças originadas na nova terra que emigrou.
Este que vos escreve arrisca algumas rimas na tentativa de mostrar que o povo arrancado de suas casas ainda busca ao menos um punhado de terra para misturar com as águas que correm de seus semblantes:
“Em Jaguaribara aconteceu
Dois grandes dilúvios
Uma torrente prevaleceu
Em dois grandes flúvios
A primeira inundou os lares
A segunda alagou os rostos
A primeira afundou milhares
A segunda emergiu desgostos
A primeira o sol secou
Mas a segunda no entanto
Ao povo ninguém chegou
Para enxugar seu pranto”
[O crítico Rodrigo Passolargo elegeu Memórias da Chuva como Melhor Filme de 2023]
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