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  • Raiane Ferreira

Medusa (2023): A insanidade como via de libertação do feminino

Texto publicado originalmente por Raiane Ferreira no site Uma Mulher com uma Câmera


O cinema de horror brasileiro tem crescido bastante na última década. E no fluxo dessa expansão, muitas diretoras optam por utilizar do gênero para contar suas estórias e fazer críticas sociais e políticas à sociedade em que vivemos. Numa espécie de tríade dourada da cinematografia de gênero no Brasil, as realizadoras Gabriela Amaral Almeida, Juliana Rojas e Anita Rocha da Silveira trazem uma perspectiva muito rica daquilo o que o cinema pode encarnar no nosso país. Em seu segundo longa-metragem, Anita coloca em discussão uma crítica à naturalização das aparências e à repressão ao feminino por parte do mundo religioso. Essa é a premissa principal do terror, “Medusa” (2023).


Em “Medusa” acompanhamos Mariana, uma jovem adulta membro de um mundo ordenado pela fé e pelos bons costumes. Para continuar inclusa no meio, ela precisa se esforçar muito para sustentar uma perfeição aparente dos seus costumes, e ir às ruas, com seu grupo de colegas manter uma suposta ordem na cidade. Acreditando no tal dever, as garotas agem com violência junto às mulheres que não seguem os mesmos ideais que elas.


Esta atitude é reforçada por uma lenda antiga no qual Melissa, uma artista que costumava sair pelas noites para dançar, desaparece após um ataque que deformou seu rosto, deixando apenas boatos sobre sua existência no imaginário das pessoas na cidade. Assim como suas demais amigas, Mariana mantém uma obsessão pela lenda dessa figura oculta. Na intenção de saber mais sobre esse mistério, a protagonista parteem busca de pistas que a levem ao paradeiro dela.


Anita Rocha da Silveira parece compor aqui uma narrativa mais madura comparada ao seu longa anterior. Assim como Gabriel Mascaro em Divino Amor, ela também utiliza a estética neon para ilustrar um mundo distópico regido pela ideologia de uma igreja neopentecostal. Desta forma, a diretora mistura o cômico, o bizarro e o terror psicológico em uma construção complexa que propõe uma crítica às regras patriarcais, ao fanatismo religioso e à intolerância.

No nível da forma, podemos observar que o filme possui uma fotografia repleta de belas composições e que aciona uma atmosfera misteriosa em torno dos eventos nela contidos. A diretora parte de um conceito estilizado, com toques fantásticos para ilustrar um futuro apocalíptico onde a moral é distorcida. Esta escolha vem como denúncia de uma realidade perigosa que está crescendo no Brasil, onde as pessoas se “bestializam” aos custos de uma fé cega, se separando da coerência humana. As duas ambiências mais marcantes do filme espelham a bipolaridade presente na sociedade brasileira atual. A igreja é um espaço de regra e punição. Nessa lógica, a ideia dirige as pessoas a vivem dentro de uma bolha insana (e um pouco cômica) construída por idealizamos extremos. Já o hospital é um lugar “fora da realidade”, uma utopia, constituída de um tempo próprio. É misterioso mas envolvente, semelhante a um delírio, como se a liberdade estivesse próxima da loucura. A jornada de transformação de Mari é um dos pontos importantes do filme, porém não ficamos somente nela, na verdade ela serve como um início do rompimento do coletivo perante as estruturas repressoras descritas na obra. A inserção do elemento da música aliada à introdução da caracterização no uso de máscaras em ambientes naturais, florestais e de áreas abertas, aciona uma referência ao tropicalismo, uma ideia de liberdade e de um corpo livre perante momentos de opressão. Nenhum elemento é gratuito, aqui. O hospital, as pessoas em coma, os corpos desfigurados e machucados, são frutos de uma realidade cruel para com estes corpos femininos. Dessas individualidades inseridas em um estado de dormência por não querer lidar com o que está a frente. De fato, Medusa é um filme que carrega a complexidade feminina dentro de toda a sua composição visual e sonora, assim como na dinâmica entre as personagens. A liberdade aqui é uma busca consciente e inconsciente das mulheres. E se para sermos livres precisamos ser "tachadas" de loucas, então assim seremos.

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