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Rodrigo Passolargo

First Cow (2021) e Ichimei (2011): O que resta para os silenciados

Esse texto reflete uma experiência própria quando costumeiramente conecto filmes vistos com curto intervalo de tempo. E foi assim com os respectivos no título.

Em First Cow, temos uma história nos Estados Unidos de 1820 que discorre sobre uma amizade que tenta sobreviver por intermédio da primeira vaca em território. Em Ichimei, o Japão de 1634 é cenário para um ronin procurar o senhor do clã Li e solicitá-lo o ato suicida do seppuku em seus domínios.

A sobrevivência em First Cow segue com o roubo do leite para a feitura dos bolinhos que serão vendidos no mercado. Em Ichimei, a corrida da sobrevivência para salvar esposa e filho das enfermidades. Enquanto um rouba para buscar sentido para vida, o outro busca sentido na conduta que os rouba a vida.


Mas quais as semelhanças em filmes tão distintos separados por dez anos de cinematografia e um vasto oceano Pacífico? Dois filmes de formas e técnicas distintas, de enredos pouco parecidos, é de se perguntar onde a obra de uma diretora natural da ocidental Flórida encosta a obra de um diretor da oriental Osaka? Fora que ambos expõem um imenso carinho pelos planos, ou melhor, pela imagem, acredito que eles se assemelham enormemente pelo silêncio. O silêncio dos necessitados que diz sobre a necessidade dos silenciados.


Ambos os filmes carregam um protagonismo que em fora das telas continuam passando pela indigência da situação e do olhar daqueles que esbanjam. First Cow e Ichimei falam sobre o grito sempre abafado dos famintos e doentes que o mais próximo ao direito de sonhar é ter o que comer para acordar no outro dia. Enquanto os senhores de vacas e samurais questionam os princípios que levam a honra, para os marginalizados a sobrevivência nada tem a ver com honra. Não faz-se bolinhos ou cura-se doenças com honra. Não é a honra que preenche a barriga vazia ou alivia os pulmões aflitos.


O silêncio de vozes que anseiam ser destampadas que se encontra a tentativa de mudança através da esperteza. Sim, a mesma esperteza usada pelo First Cow de Cookie Figowitz e King Lu em paralelo aos nipônicos Motome Chijiiwa e Hanshiro Tsugumo é a mesma de muitos personagens brasileiros como João Grilo, Cancão, Malazarte, Malaquias Pavão e tantas histórias e tragédias do teatro nordestino.


“O esperto tem um objetivo - vingar-se do patrão ou mudar de vida -, mas a maneira como ele executa esse plano vai depender das circunstâncias à sua volta (...). Grilo é pobre e esperto. Suassuna, por sinal, concebe a esperteza como a coragem do pobre (Suassuna, 2000: 16). E não só nas peças, mas também no relato da guerra de Princesa, como foi visto, o pobre e sertanejo é descrito como um corajoso” (DMITROV, Eduardo. O Brasil dos Espertos: Uma análise da construção de Ariano Suassuna como criador e criatura. São Paulo: Alameda, 2011.)


O riso e comicidade dos espertos em histórias como O Sedutor do Sertão e O Santo e a Porca são substituídos pelo silêncio em First Cow e Ichimei. A impossibilidade de pensar num grupo maior por conta das amarras por migalhas que só saciam seu particular (sem descaracterizar temas coletivos e, pelo contrário, os maximizam) é um dos tipos de quietudes que abafam um final cantarolante.


A quietude provocada por senhores que jorram leite derramado em armaduras vermelhas e escondem a mediocridade atrás de uma honra que não existe. É esse silêncio que faz a própria vida e o cinema de Kelly Richardt & Takashi Miike convergirem.

 
Rodrigo Passolargo é roteirista, escritor, produtor cultural cearense e crítico de cinema. Formado em Economia e graduando em História, com pesquisa voltada ao regional nordestino, cultura popular e armorial.

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