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FENDA E TIRAMISÚ | O AMARGO PRESENTE E O DOCE FUTURO

Raiane Ferreira



A Competitiva Brasileira de Curta-metragem do 34° Cine Ceará Mostra teve dois curtas cearenses com características distintas, Fenda (2024) de Lis Paim e Tiramisú de Leônidas Oliveira. Gostaria de propor uma reflexão sobre essas duas obras. 


Fenda acompanha um duro reencontro entre mãe e filha, no qual existe um buraco no tempo entre elas. Diná não participou do crescimento da filha, então, depois de anos ela visita Marta em sua casa na cidade de Fortaleza, porém, a filha não demonstra gostar de sua presença. 


Digo que este curta de Lis Paim é um trabalho sobre mágoa, sobre a não superação do abandono, mesmo depois de tanto tempo e tantas conquistas aparentemente referenciadas a uma das protagonistas da narrativa. Infelizmente, neste curta de 20 minutos, não conseguimos perceber nenhum movimento de aproximação entre as duas personagens, que apesar de serem mãe e filha, acabam sendo colocadas nesse papel de serem, sobretudo, duas estranhas.


O curta poderia ter trabalhado o estranhamento entre elas de forma gradual, mas logo nos primeiros minutos essa condição já é entregue pela figura rígida de Marta diante a presença de Diná, que até tenta uma abordagem descontraída mas cujas investidas encontram resistência da pessoa diante dela. Por mais que Marta tenha se tornado uma mulher de sucesso em sua profissão, em todo o curta ela demonstra uma tristeza que destroi qualquer possibilidade de aproximação do público pela sua construção reativa e responsiva.


O dilema da cientista com a presença de sua matriarca é complexo, porém, o desenvolvimento da personagem na cena, a estrutura fílmica e os diálogos propostos não ajudam a compreender quem ela é de fato para além do ocorrido na infância. Do que gosta de fazer, de comer, que tipos de amigos tem… É como se a personagem se resumisse somente a essa dor. Como se todas as conquistas - do bom apartamento à posição profissional ocupada pela cientista -  não tivessem peso em sua trajetória para reconfigurar o passado, propondo uma atitude mais madura diante de Diná.



Me pergunto por que uma mulher negra tão inteligente que tem sua própria casa, sua independência, e suas crenças alimenta tal amargura por sua mãe mesmo depois de tanto tempo. Pode haver uma razão, mas  ela não é operacionalizada cinematográficamente aqui.


Seria muito mais interessante se a direção trouxesse as personagens tentando serem amigáveis no início, mas, por serem duas estranhas, uma não soubesse como agir, nem o que dizer diante da outra. E, aos poucos, se revelaria a problemática entre elas. Talvez até  houvesse um estímulo à reconciliação.


Mas não é isso que temos. O que parece restar é somente mais um filme para incluir no que chamo de um catálogo de um “cinema de amargura”. No fim, Fenda não propõe nada além da mágoa e do rancor que não permitem enxergar possibilidades de um futuro liberto do passado. 


Penso no cinema como um criador de realidades, podendo ressignificar momentos, construir afetos, mesmo se tratando de temas difíceis. Me lembro do filme Caminhos Cruzados (2024) de Levan Akin, no qual uma tia vai a procura de sua sobrinha, uma mulher trans que foi expulsa de casa, e que é apresentada na obra como sendo a única família restante dessa figura de uma Turquia mais anacronizante, porém ainda sim, flexível, aberta para o futuro. Neste longa, Akin constrói uma trajetória incerta, mas cheia de altruísmo e delicadeza. Vejo este mesmo movimento presente em um outro filme produzido aqui no Ceará nesta temporada, falo de Tiramisú (2024).


No curta de Leônidas Oliveira, acompanhamos Rio, Claudia e Evângelho que vivem no interior do Ceará e, mesmo diante das dificuldades, conseguem mostrar esperança no futuro. Nisso, o amor, o sonho e a cumplicidade são temáticas centrais trabalhadas aqui. 



É nesse espaço interiorano que podemos pensar em um Brasil diferente. Através dos pequenos gestos podemos entender o que as personagens do curta almejam para si, mesmo sendo corpos dissidentes. São personagens do cinema profundo que pertencem a grupos sociais que ainda estão batalhando por espaço. Vê-los em tela, em cena, aciona a necessidade de mais narrativas assim no cinema. Pois, junto deles, acreditamos ser possível aquilo que desejam no campo da ficcionalização apresentada na narrativa. 


Assim, temos neste belo curta uma postura madura sobre o desejo de mudança a partir de gestos simples e significativos. Rio sonha em sair daquela cidade. E nisso, se permite aprender a andar de bicicleta. Cláudia, uma mulher trans, deseja ser vereadora da pequena localidade e sabe que essa jornada não será fácil.


Cada movimento deles importa e conta mais sobre um Brasil que desejamos, onde o futuro pertence a todos, e não só a uma classe ou um determinado tipo de corpo. É esse desejo de mudança que faz os três personagens caminharem para frente, e não para trás, diferente de Marta, que, apesar de ter conquistado seu espaço no mundo, parou no tempo por acreditar não poder perdoar sua mãe.


Fazendo uma analogia entre cinema e gastronomia, podemos dizer que Fenda tem gosto amargo, desses que você acaba querendo provar apenas uma vez. Diferente de Tiramisu, que assim como a sobremesa, é doce, leve e prazeroso de comer. Dá até vontade de repetir. 


Espero que este belo filme de Leônidas Oliveira não seja esquecido, pois, apesar de não ter sido premiado no 34º Cine Ceará, ele possui uma potência incrível que vem do verdadeiro “Brasil profundo”, que carrega discussões atuais no cerne de sua construção cinematográfica. Creio que precisamos mais disso no cinema cearense.


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