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  • Arthur Gadelha

Dossiê VII Curta Vazantes: conviver com o desastre

Arthur Gadelha compôs o Júri da Crítica com Rafael M. Vasconcelos e Thiago Henrique Sena. Confira os premiados aqui

"Mesmo os perigos mais insuspeitáveis estão sinalizados", declara a sinopse do curta espanhol S13p15a (2021), de forma talvez ainda mais sucinta que o próprio filme que tem menos de um minuto. Nessa cidade obscura construída no imaginário de Jesús Loniego, o risco de ser abduzido por alienígenas não é surpresa e sequer uma anomalia paranormal, mas um acontecimento tão corriqueiro ao ponto de sua "prevenção" ser institucionalizada. Havia uma placa ali cuja mensagem é objetiva: aqui pode ser que passe uma nave e te leve embora.


Loniego, no entanto, também nos mostra que aquela região não é nenhuma área 51, privada ou secreta, mas uma área residencial comum por onde pessoas precisam transitar. Tudo bem que, para dar o tom dramático, esse homem caminhava desprevenido no que parece ser uma madrugada assustadora, mas deveria mesmo ser culpa dele ser abduzido? Por essa dúvida, que até pode soar cômica a depender do ponto de vista, há uma analogia sensorial com o Estado de omissão em que estamos inseridos em diversas formas, mas principalmente como brasileiros que atravessam as negligências institucionais diante dos suspenses de uma pandemia.


Estamos todos avisados de que a morte nos acompanha pelo projeto genocida em curso de ter a negação como proposta para a inexistência do conflito. Apesar disso, o país não reage a altura, não se cansa de levar a sério este que "nos governa". Apesar de tudo isso, estamos todos como a senhora que grita ao testemunhar a abdução mesmo sabendo que ela poderia acontecer a qualquer momento. A realidade de S13p15a convive com o desastre, normaliza o absurdo, silencia o caos que está posto em prática aos olhos nus. Nessa projeção, outras produções em exibição no evento puderam ser assimiladas com as negações assistidas da existência, em corpo e imagem.


Em Terceiro Dia (CE), de Jéssica Queiroz, uma mulher abandonada, cuja realidade não lhe oferece qualquer amparo social ou estatal, que se vê obrigada a existir num hospital como um fantasma que ninguém está vendo - ou que ninguém quer ver. Em Neguinho (RJ), de Marçal Vianna, também premiado no Júri da Crítica, as práticas racistas que nunca são ditas em voz alta, de forma oficial, jogando a escanteio a discussão ao ponto de invalidar a indignação pelo rótulo do "excesso", sem que qualquer equivalência de debate seja proposta. A mãe, que convive com a discriminação de uma sociedade criminosa, está ciente do que pode acontecer ao filho porque ela conhece o mundo, ela sabe que os "perigos estão sinalizados". É a mesma sociedade que, pela "existência da placa", exige a conformação de quem está sendo abduzido a olho nu, aceitando oficialmente que as abduções são a regra, que não há o que fazer, que não há confronto, não há direito de conversa e nem de resposta. "Que se foda", é a resposta possível, apresentada sem que possamos testemunhar no que ela pode se desdobrar. Isso é dito tal qual, mas de forma ainda inocente ao estado do mundo, pela garota em Baile (SC), de Cíntia Domit Bittar, quando ela impõe a própria imagem, mesmo que minúscula, na parede que representa o poder e seus detentores. Sua imagem, mulher negra periférica, não está naquela parede, como se essa ausência atendesse uma regra, como se houvesse uma placa por ali de proibição. Mas ela está lá.


Diante dessas "regras", fugir é uma opção? É para Inabitável (PE), de Matheus Farias e Enock Carvalho, mas não para Sobre Nossas Cabeças (BA), de Susan Kalik e Thiago Gomes. No curta pernambucano, ao contrário de S13p15a, a abdução é o absurdamente inesperado, e a proposta de um mundo sem conflitos é um destino honesto como se construído exatamente por quem é negado neste. No baiano, o "alienígena" já é tal qual seu significado, civilização forasteira alheia às "resoluções", como uma entidade salvadora suprema e privilegiada. "E se eu não quiser ser salvo?", pergunta Cícero, lembrando ao "amigo" que não faz sentido partir se quem fica do lado de cá seguirá "sem justiça". Apesar dos discursos distintos, os filme não se anulam, mas propõem percepções sobre realidades construídas na fantasia da existência de outros, tão completamente outros, que já não podem ser confundido com os habitantes daqui.


Essas sensações gritam ao longo da programação do VII Curta Vazantes, uma resposta inconformada diante do desastre, a comoção contra a tragédia e a invalidez de seu anúncio premeditado. Não importa, e nunca importou, se "os perigos estão sinalizados", já que essa sinalização sempre significou a exigência criminosa de aceitação às práticas vendidas como a normalidade das coisas. Muita coisa está acontecendo nessa superfície da realidade, mas, definitivamente, nunca houve nada de normal em tudo isso.

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