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Thiago Henrique Sena

Dossiê VII Curta Vazantes: corpo, política e cinema

Thiago Henrique Sena compôs o Júri da Crítica com Arthur Gadelha e Rafael M. Vasconcelos. Confira os premiados aqui


Em 2012, em entrevista para a revista Cult, Abbas Kiarostami disse: “Se os personagens e a história são bem feitos, não acho que um filme pode ser apolítico. Sempre estará sujeito à política. (...) Nenhum filme, se bem feito, fica à parte da situação política que está em seu contexto”. E o tom político predominou na VII Mostra Curta Vazantes, que contou com a exibição virtual de mais de 20 filmes dos mais variados estilos e lugares, todos com esse tema em comum: política.


Embora a curadoria sugerisse uma sequência lógica de exibição, dividindo de maneira bem objetiva os filmes que dialogavam em pequenas sessões, um dos prazeres depois de ver todos os curtas é fugir desse lugar de lógica e partir em uma busca imaginária de fios que conectam os filmes, um diálogo silencioso a espera de uma decodificação. A exposição desse diálogo é o principal papel da crítica, ao escapar do espaço comum, abre-se novas janelas de discussões e de possibilidades para enxergar o cinema. Se esse diálogo permanece decodificado, a crítica tem a função de decifrá-lo imediatamente para o leitor e apreciador de cinema.


O trabalho da curadoria, nesse sentido, foi fundamental para a seleção de excelentes filmes que dialogam entre si e com um contexto socioeconômico da realidade brasileira e mundial. Dessa escolha, há dois curtas que travam um diálogo importante que nem sempre é escolhido por uma parte de cineastas. São eles Terceiro Dia, de Jéssica Queiroz, e Roberto, de Carmen Córdoba González. Os filmes cearense e espanhol travam um diálogo pertinente sobre o corpo, principalmente o feminino.


Terceiro Dia, de direção de Jéssica Queiroz, apresenta a história de uma jovem mulher negra e periférica, que acaba de ter seu primeiro filho. O período de puerpério da protagonista é marcado por incertezas e, sobretudo, por medo. Porém o filme vai além da temática do abandono materno. A grande temática aqui, que vem diluída nas ações da personagem e nas suas interações com outras pessoas, é a falha de suporte que essa jovem mãe tem. O filme evidencia um grave problema de política pública, principalmente de saúde e assistência social. Isso salta aos olhos diante da quase não fala de sua protagonista. O silêncio, além de ser um gatilho para o desespero da personagem, também tem o papel de denunciar a falta de diálogo de uma pessoa com os agentes do Estado. O corpo e a vontade dessa mulher são completamente ignorados, seguindo um padrão que infelizmente é tão comum na sociedade brasileira, sobretudo, na parcela preta, periférica e pobre. Todo esse sentimento e denúncia são expostos por meio da escolha dos planos que diretora faz para contar a história, à medida que o filme apresenta primeiros planos ou planos médios focados na protagonista, com a função de mostrar a angústia e o abandono que essa jovem mãe sofre. Ele traz belos planos gerais para mostrar a solidão da protagonista em meio ao caos, com destaque especial ao plano do corredor ao lado de um quadro da Virgem Maria, saltando aos olhos o exílio da personagem perante ao modelo ideal de mãe, segundo a cultura cristã. É um contraste forte e necessário.


Roberto, de direção de Carmen Córdoba González, é uma animação hispânica que conta a história de Roberto, um jovem que é apaixonado por sua vizinha desde sua infância, mas que é afastado por ela, sobretudo por ela ter vergonha de seu corpo. Antes de tudo, cabe ressaltar que apesar do curta se chamar Roberto, a protagonista do filme é a vizinha e toda a reflexão que suas ações trazem. A escolha da linguagem e da técnica de animação para contar uma história de um problema também de ordem pública é acertada na medida que trata com leveza e uma linguagem universal desse assunto delicado. O filme trata de uma jovem que busca o corpo perfeito, segundo os padrões da sociedade, e ela sofre principalmente por achar que tem um corpo considerado “inadequado” pela sociedade. No fim, era apenas o jeito que ela se via, pois o filme tratava de uma pessoa anoréxica. Importante ressaltar que o filme não privilegia ou romantiza nenhum tipo específico de corpo, mas que, ao invés disso, aponta para uma forte crítica social de como certos padrões são impostos nos corpos das pessoas e como isso pode afetá-las. É um curta sobre como o corpo é visto e principalmente avaliado pela sociedade, portanto um filme político é necessário para que esses padrões, que são tão danosos às pessoas, sejam quebrados.


Seguindo o pensamento de Kiarostami de que um filme com bons personagens e bem-feito é um filme político, temos aqui dois excelentes exemplos de filmes políticos e que tratam de temas que podem convergir em algum momento: o corpo. Seja em caso de falta de assistencialismo do Estado ou de seguir os padrões da sociedade. O corpo no cinema tem função primordial para contar a história, é um instrumento político e bem poderoso. A forma como Terceiro Dia e Roberto tratam de problemas tão comuns e incrustados na nossa sociedade é necessária e sempre atual.


O VII Mostra Curta Vazantes realizado de forma virtual é resistência. Em um Brasil que rejeita cada vez mais sua cultura, contar diversas histórias e denunciar uma série de problemas se torna cada vez mais vital. Em um ano de pandemia de COVID-19 e com o agravamento dos problemas sociais brasileiros, fica uma mensagem: a arte resiste e sempre resistirá. Aos realizadores, produtores, roteiristas, editores e a todos que produzem, pensam e vivem o cinema fica aqui a admiração e a certeza que estão no caminho certo.


E por mais que queiram silenciar, um viva ao cinema brasileiro.

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