Rafael Menezes compôs o Júri da Crítica do IV Festival de Cinema do Vale do Jaguaribe

Uma das coisas que une os amantes da sétima arte é justamente a experiência coletiva de estar numa sala de exibição, a tela grande e toda a atmosfera do cinema. Uma das coisas que mais maltrata em meio a pandemia mundial que vivemos, tirando o dia a dia com notícias desoladoras a todo momento, é justamente a impossibilidade dessa experiência coletiva. O cinema tenta se reinventar a cada nova descoberta sobre o vírus, a cada nova onda de contágio. Felizmente nós temos a tecnologia ao nosso alcance e vivemos a realidade do streaming há alguns anos já, com obras que, mesmo debutando em plataformas online, despontam nos principais prêmios de cinema mundo afora. Diante desse cenário contemporâneo, beirando o futurismo da ficção científica, o IV Festival de Cinema do Vale do Jaguaribe foi um muito bem recebido evento, incrível em toda sua execução.
O Festival, focado apenas em produções de curta-metragem, trouxe obras diversas, tanto em conceito, quanto em realização. Obviamente nossa realidade atual estava impregnada em muitos dos filmes que compuseram a mostra, produzidos já dentro do cotidiano da pandemia. E o que poderia ser dificuldade invariavelmente se converte em criatividade, engenhosidade e até brilhantismo. Câmeras de computador e de telefones celulares não apenas emprestam uma autenticidade ímpar a alguns dos curtas, como também nos remetem às transformações pelas quais estamos passando diante do caos que se perpetua lá fora. Enclausurados em nossas casas, com nossos próprios computadores e telefones celulares, eu e meus colegas de Aceccine tivemos a grata e inglória tarefa de escolher o melhor filme da Mostra Nacional e o melhor filme da Mostra Cearense. Grata por ser sempre prazeroso estar em contato com o que está sendo pensado e produzido em matéria de audiovisual pelo Brasil, inglória pelo simples fato de que nos deparamos com produções tão inspiradas que tornou a decisão final um tanto difícil.
Particularmente fiquei muitíssimo encantado com a sensibilidade de 4 Bilhões de Infinitos. Fiquei maravilhado com a estética de Abjetas 288. Preces Precipitadas de Um Lugar Sagrado que Não Existe Mais me encheu os olhos e o peito de orgulho, afinal é uma belíssima produção do nosso Ceará. Inabitável, outra ficção científica de muita qualidade, é um filme irretocável. E eu poderia ficar falando de tantos outros por um bom tempo, mas A Morte Branca do Feiticeiro Negro acabou ganhando nossa indicação. Conceitualmente já é uma ideia incrível, um recorte de um período vergonhoso da nossa história e que reverbera até hoje. Fotografias e poucos registros em vídeo, com uma trilha sonora perturbadora e a carta de Timóteo costurando uma narrativa pesada, desesperadora e absurdamente poderosa. Igualmente forte é o cearense Pátria que, de forma simples e muito autêntica, consegue resumir a nossa história política recente com irreverência e acidez.
Os dois premiados são curtas documentais, cada um com um conceito diferente, mas ambos tratando de certa forma da mesma temática: a necropolítica brasileira. Temos como alicerce da nossa sociedade o genocídio dos povos nativos pelas mãos dos colonizadores, o sangue dos povos africanos e a exploração dos desvalidos. Não é de se espantar que o nosso atual chefe do executivo faça pouco caso das centenas de milhares de vítimas da pandemia. O genocídio está no nosso DNA enquanto sociedade. E o cinema enquanto arte deve questionar, deve levantar discussões e deve esfregar nas nossas caras essas verdades horrorosas, vergonhosas. Participar do júri do IV Festival de Cinema do Vale do Jaguaribe foi uma honra, um privilégio e uma oportunidade de refletir, a partir dessas obras, sobre nós, Brasil.
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