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  • Daniel Araújo

Crimes do Futuro (2022): considerações de um cinema da posteridade


Quais as principais características ou formas de ser daquilo o que poderíamos entender como uma narrativa do futuro? Talvez essa seja uma discussão que passe pela questão do futurismo ou da inovação nos modos de se contar por meio da realização audiovisual.


Como um diretor e autor que vem de uma tradição do cinema narrativo de gênero, David Cronenberg pode ser lido como um realizador que já teria dito tudo o que precisaria um dia dizer. Colocar em palavras aquilo o que ainda não fora dito pela gramática do cinema talvez seja um dos maiores desafios no exercício da cinematografia.


Por isso é tão interessante a sua proposta uma vez que ela não parece querer "chocar" o espectador como alguns resenhistas chegaram a pontuar quando do lançamento do filme. Não é sobre isso. O regime das imagens que Cronenberg parece buscar evocar está muito mais alinhado à uma perspectiva antiespetacular em último caso.


Porque ainda que o universo temático da estória possa estabelecer os elementos base para um novo conto cinematográfico calcado na potência do body horror, o mestre canadense parece recusar essa exposição mais gratuita daquilo o que eventos da estória colocam em cena.


Por outro lado, esse assume essa gratuidade, que na verdade se reveste de uma abordagem mais direta, muito mais a partir da própria dinâmica do espaço cinematográfico do filme. É excelente a concepção dessa ambiência onde os objetos de cena e os locais onde as cenas em si ocorrem, não serem funcionais.


Não em um sentido de, juntos, esses elementos terem de estar a postos para significar algo dentro do componente dramatúrgico do longa. Mas numa lógica quase de complementaridade não obrigatória. Quando observamos determinados personagens em um ambiente (um quarto, uma sala, um galpão) nunca há muitos objetos compondo a cenografia.


Na maior parte dos casos só há as estruturas básicas daquela estrutura onde determinada cena se desenvove, seja uma cadeira, uma estante, janelas, e afins. Para falar de um futuro onde os humanos já não são o que são ainda na contemporaneidade, faz muito sentido essa proposição que Cronenberg faz de reduzir também aquilo o que vemos de acessório ao mínimo.


Mais do que sugerir que detenhamos nossa atenção na dinâmica entre os atores, o realizador incorpora o tema para dentro de uma funcionalidade bastante elementar da obra, o design de produção e sua direção de arte. Novamente, o filme talvez não seja sobre e para chocar - nos. Mas nos convidar a olharmos para coisas que na automaticidade da nossa relação com a experiência cinematográfica acabamos não nos dando conta.


O que um trabalho como esse coloca em perspectiva é o fato de que muitas vezes somos como figuras de múltiplos sentidos que apenas se instigam pelos estímulos que estão na superfície da relação que estabelecemos com as imagens do cinema.


Aos 79 anos é interessante pensarmos (e notarmos) que para Cronenberg, a matéria mais valiosa do cinema não esteja mais na contação da estória em uma prerrogativa formuláica. Mas sim nessa vertente de apresentação do que seria uma narrativa de recursos mínimos e não mais dados à ultra complexos modos de organização dramatúrgicos.


Não há simplismos na sua proposição, é verdade. Mas há sempre esse recurso ínfimo do filme sendo apenas o que ele é. Dois personagens interagindo num mesmo espaço pode significar apenas desejo de um pela matéria do outro. Um beijo é apenas um beijo. Não significa um esquema para alguma trapaça ou jogo de sedução.


Tudo é "pós" aqui. E nada "é" sendo usualmente algo mais. Essa é uma vertente interessante porque aponta uma posição de Cronenberg que não é mais somente aquela ligada à investigação da interconexão entre aquilo o que é o maquínico e o que é corpóreo. Reitero o ponto de que nada disso é feito para "chocar" o espectador ou algo parecido.

No alto das suas setenta décadas de vivências, o diretor não opera mais nessa escala tão simplista. Seu cinema evoca algo maior. Não presume qualquer aprovação ou reação seja do espectador viciado nas tendências de uma arte muito dada a um ideal de pasteurização ou naquela pautada pela pseudocomplexificação do seu fazer. A autenticidade da sua forma de expressão surge também desse entendimento. Uma resposta direta ao cinema do futuro, a uma posteridade previsível não porque ela mesma seja destituída de uma organização mais estruturada. Mas sim porque já nos chega pela via dos possíveis que o fluxo da humanidade se encaminha. Essa é uma das inúmeras fórmulas da ficção científica do futuro. Tópico esse que Cronenberg sempre entendeu muito bem.


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Daniel Araújo é jornalista, crítico de cinema, especialista em Cinema e Audiovisual e autor do site Um Filme ou Dois.

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