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Marcelo Ikeda

CIDADE; CAMPO




Começo este texto sobre CIDADE;CAMPO pensando a partir do ponto-e-vírgula expresso no título. O que é um ponto-e-vírgula? Trata-se de uma pontuação pouco empregada em nosso regime, algo entre uma vírgula e um ponto final. Um recurso geralmente utilizado para uma enumeração ou para demarcar um contraste. Será que, a partir desse recurso gramatical, poderíamos deslocá-lo para pensar a estrutura gramatical do próprio filme de Rojas?


Essa relação entre cidade e campo, marcada por esse ponto-e-vírgula, é um conceito da geografia, e pode também ser vista por uma demarcação entre zona urbana e zona rural. Mas Rojas está interessada não meramente no espaço físico mas nas interrelações entre os dois elementos, em seus elementos de transição, e como eles provocam impactos nas visões de mundo das pessoas. Para isso,elabora duas histórias: na primeira, uma mulher do campo vai morar na cidade; na segunda, um casal de mulheres da cidade vai ao campo. A partir desses cruzamentos, Rojas examina os impactos da geografia nos modos de ser das personagens.


As duas histórias possuem um elemento em comum, um ponto de partida que impulsiona a mudança geográfica das personagens: o luto. É a morte que as arremessa para o outro lado. É como se elas não tivessem saída e precisassem reconstruir suas vidas. Penso também nesse entrecho de reconstrução como se essas histórias, de algum modo, refletissem o estado de espírito de nosso país, como espelho de nosso processo de superação de um luto coletivo.


A primeira história mostra uma mulher de meia-idade (Fernanda Vianna) que se muda para a casa de uma parente na cidade após perder tudo na tragédia do rompimento da barragem em Minas Gerais. Pela ênfase em uma dramaturgia do comum, é como se esse segmento se aproximasse do cinema de André Novais, até mesmo pelo típico sotaque mineiro. Brilhantemente interpretada por Fernanda Vianna, o filme investiga os modos de ser de uma pequena família e suas dificuldades do cotidiano: o trabalho em uma empresa de limpeza e o dia a dia com suas novas amigas do trabalho, o convívio em casa com o neto de sua anfitriã. As situações expostas por Rojas, e especialmente o tratamento do tempo e o papel dos silêncios, nos fazem mergulhar num outro modo de ser, menos acelerado ou pragmático. A mulher do campo gosta de observar o movimento do mundo ainda antes do amanhecer, não julga as pessoas, cria poucas expectativas ou ambições para o seu mundo. Ela é quase uma personagem zen, que traz consigo uma paz ou acalanto para os que estão ao seu redor. Quase não há dificuldades ou conflitos – salvo uma ocasião de movimento das trabalhadoras, que me lembrou de Pão e rosas, de Ken Loach (e, pelo menos para mim, a comparação com esse filme não se trata de um elogio rs). Em outros momentos, pequenos drops de fantástico preenchem o espaço do filme tomado por uma dramaturgia do comum (p ex, o cavalo morto que surge no meio da avenida; a lareira artificial que acalanta a soneca da personagem no sofá). Há um belo momento em que, depois de uma queda de luz, Vianna abre a torneira da cozinha, e a água marrom que escorre nos remete ao barro da tragédia de Minas (ver foto 2) (um plano que poderia ser muito o de OLençol branco). A água marrom funde o realismo ao fantástico, o presente e a memória da tragédia que nunca se apaga. Essa oscilação entre o comum e o fantástico, que perpassa vários filmes da realizadora e também de seus amigos criadores da Filmes do Caixote, pode ser expressa por um plano-síntese, que mostra uma misteriosa e pequena luz vermelha próxima à lua cheia (ver foto 1). Uma luz natural e uma artificial, conjugadas lado a lado, aproximadas por meio do cinema (provavelmente as duas introduzidas por um efeito visual na pós), são o elemento visual que une as duas histórias, uma vez que ambas as luzes são percebidas no céu pelas personagens dos dois segmentos. Há momentos singelos que evidenciam a delicadeza do estilo de Rojas (a escolha de um pingente dentro de uma caixa de doação; as cascas de mexericas que formam um mapa de um lugar que não mais existe). Outro ponto também a ser destacado é que esse é um filme de mulheres – os homens, quando aparecem (o menino ou o fazendeiro) são apenas coadjuvantes. As protagonistas são mulheres independentes, que precisam reafirmar o seu lugar no mundo sem os homens (o luto do pai na segunda parte, a distância do filho caminhoneiro, na primeira).

Já a segunda parte mostra um casal de mulheres que se muda para o campo após a morte do pai de uma delas. Elas passam a cuidar da fazenda do pai, vivem certo estranhamento mas demonstram alguma familiaridade com a pecuária e a agricultura. A filha vai descobrindo aos poucos mais elementos do misterioso e distante pai por meio dos rastros de sua presença na casa (as caixas e os livros me lembraram levemente do mesmo entrecho de Estanho caminho, de Guto Parente). Descobrem que o pai pesquisava plantas medicinais, e com a chegada de uma misteriosa viajante, próxima a seu pai, passam por um ritual ao tomarem um chá de Ayahuasca, o que exacerba uma crise nas duas personagens. O campo, portanto, é um espaço que estimula essa reconexão espiritual das personagens citadinas com sua origem ancestral. Elementos da floresta, como uivos de lobos, estimulam essa presença do metafísico, com passagens que se aproximam de uma ambiência de suspense/terror – também outro elemento típico do cinema de Rojas. Esses elementos sugerem a forte presença de um animismo – uma relação simbiótica entre plantas, animais e os humanos, como parte de uma outra conexão com a natureza.


Muitas dessas conexões são marcadas a partir da configuração de um casal de mulheres, de corpos bastante diferentes (Mirella Façanha e Bruna Linzmeyer). Esse casal atípico e a expressão de seus corpos culmina numa cena magistral de sexo, que certamente vai integar qualquer antologia no cinema brasileiro. A forma delicada e sensual como essas duas mulheres com corpos tão distintos fazem amor parece ser a melhor expressão encontrada no cinema brasileiro contemporâneo para lidar com o desafio de representação de personagens estigmatizados: sem nenhum panfleto, a beleza da cena está na naturalidade com que o amor entre as duas personagens se desenvolve. As pessoas precisam é amar, do jeito como são, independentemente dos padrões cosméticos e morais hegemônicos sociais. Lição para nosso cinema feminista, LGBTQIA+ e negro, para além dos traços mais radicais do identitarismo woke.


Essa cena me lembrou levemente a transa de Sexta à noite, da Claire Denis. Outro momento, quando Linzmeyer parece fazer um trecho de dança contemporâneo em meio ao curral, me remeteu a outro filme de Denis: Bom trabalho. Enquanto a primeira parte nos aproxima do cinema de André Novais Oliveira, da Filmes de Plástico, essa segunda parte, até mesmo pelas suas sugestivas descontinuidades narrativas está mais próximo de Denis e até de Apichatpong, com um breve momento de encontro entre filha-e-pai na floresta que me pareceu de Shyamalan rs. De todo modo, enquanto o primeiro segmento está mais próxima da dramaturgia do comum e da identificação carismática com os personagens, a segunda parte é mais ambígua e sombria, a lógica do sonho ou delírio vai se intensificando, bem com a crise das personagens, e a narrativa se torna menos linear e clara. Voltamos então ao ponto-e-vírgula do título e como ele também se expressa por essas dobras narrativas e por um clima sensorial que vai se aprofundando no filme à medida em que nos aproximamos da floresta.


Por outro lado, e gostaria de fechar meu texto dessa forma: o ponto-e-vírgula de alguma forma demarca uma separação nítida entre CAMPO e CIDADE, em lados separados e praticamente opostos. Ao demarcar de forma tão explícita sua oposição, Rojas acaba reproduzindo alguns lugares comuns dos modos de ser desses lugares, especialmente no primeiro episódio, que expressa, ainda que no extracampo, um campo mais purificado espiritualmente. Há uma certa ingenuidade na construção das relações entre os personagens. Ou seja, vejo CIDADE;CAMPO com um interesse maior em construir um universo cinematográfico em torno dos seus personagens, do que propriamente em examinar a interrelação entre esses espaços. De todo modo, não há como sair de CIDADE;CAMPO sem refletir nos nossos modos de ser, no que estamos fazendo de nossas vidas, em como estamos imersos em nossas zonas de conforto. A delicadeza com que Rojas molda a construção cênica desses universos e dos interiores de suas personagens é o ponto alto desse filme, que é mais um elemento de continuidade na trajetória dessa formidável realizadora.

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