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  • Rodrigo Passolargo

Chico Antônio, O Herói com Carater (1983): A emocionante pancada do ganzá

Texto por Rodrigo Passolargo

“De noite, aparece Chico Antônio, O Coqueiro

Que artista! A voz dele é quente e de uma simpatia inigualável!

Olhos lindos relumiando uma luz que não era do mundo mais!

Estou divinizado por uma das comoções mais formidáveis de minha vida”


Essas são palavras de Mário de Andrade sobre seu primeiro contato com esse homem que reverbera no documentário “Chico Antônio, O Herói Com Caráter” (1983) de Eduardo Escorel, exibido no É Tudo Verdade 2022 - 27º Festival Internacional de Documentários.


O documentário contextualiza a importância de Chico iniciando através da figura de Mário de Andrade, este um dos maiores folcloristas da história do Brasil, com uma vasta bibliografia amparada na essencial observação e coleta das manifestações populares e individuais. O folclorista é antes de mais nada um frenético curioso à procura do deslumbrante sentimento do/pelo povo. Mário já tinha confessado em seu “O Turista Aprendiz” (publicação póstuma de 1976) não apreciar viagens, mas seu amor o fez ganhar estradas narradas pelo menos três vezes, e numa delas que o filme faz seu revival.


O encontro de Mário de Andrade com Chico Antônio ocorreu entre dezembro de 1928 e fevereiro de 1929, quando o folclorista visitou o Nordeste e registrou diversas manifestações populares, principalmente os cocos.


Coco nesse caso não é a fruta e o coqueiro menos ainda sua árvore. Coco é uma dança e ritmo musical típica do Nordeste provavelmente herdada da cultura africana, pelas características do ritmo, passos, métricas e percussão, como o icônico instrumento do coqueiro Chico Antônio: ganzá (do quimbundo “nganza”, que significa “cabeça”)


Antônio Bento Lima, companheiro de viagem de Mário e grande crítico entendedor da arte abstrata reconheceu em Chico um talento acima de outros cantadores. A imaginação geniosamente coerente e muitas vezes surreal em topónimos delirantes que seduziam a noite toda sem sua plateia arredar o pé. Após cinquenta anos, Antônio Bento reage: “Ele é sempre uma presença viva na minha vida. Eu jamais esquecerei o grande artista que ele é. Pode dizer a ele que sinto uma grande saudade dele."


Às margens do rio Curimataú, no Rio Grande do Norte, o diretor Eduardo Escorel encontra o homem dos livros de Mário de Andrade e no peso de seus 80 anos, a história toma uma forma através do encanto de revisitar a outrora. A importância do homem do campo, do Brasil Real e nele residindo um panteão de sabedoria e ancestralidade faz do documentário uma extensão não somente da pesquisa de Mário de Andrade, como também o quão íntimo existe na figura de Coqueiro e o impacto causado até hoje em todos. Sejam aqueles que viveram o encontro em 1928 seja os de 1979 em diante.


Portanto, para nós, meras pessoas do Brasil Oficial, nos sobram o feito (por incapacidade) de muitas vezes fragmentar para arranharmos o entendimento da vivência do homem nordestino. Fazer o contrário é um trabalho hercúleo justamente por não entendermos o comum e recorrente dos Chicos e Mários. A proeza do filme em externar entre emoções que as memórias do passado dourado podem dar frutos a outras novas memórias do agora bronzeado. O contato com registros antigos que geram um novo registro tem um equilíbrio que poucas películas conseguem expressar. Enquanto outros documentários folclóricos dividem facetas para entendermos a narrativa proposta, Chico Antônio, O Herói com Caráter capta a unidade que o protagonista é, pois assim se faz e enxerga-se. O Homem no Mundo e o Homem no Si pelo O Homem no Mundo É o Homem no Si. Sem firulas ou embaraços.


Intervir na vida do próximo também é um ato folclórico. Haverá um dia em que escutar, compreender e apreciar “Luquinha da Lagoa” seja mais esclarecedor para/sobre nós do que esse texto onde só arranha a magnitude que foi Chico Antônio e a pancada do seu ganzá.


“Adeus, Luquinha da lagoa

Companheiro agora me lembrei

Adeus, Luquinha da lagoa

Olha na grande pilar

Adeus, Luquinha da lagoa”


Chico Antônio faleceu em 1993, no centenário do nascimento de Mário de Andrade.

 

Rodrigo Passolargo é roteirista, escritor, produtor cultural cearense e crítico de cinema. Formado em Economia e graduando em História, com pesquisa voltada ao regional nordestino, cultura popular e armorial.

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