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Raiane Ferreira

Ataque dos Cães (2021): o confronto das relações tóxicas

Crítica publicada por Raiane Ferreira no site Uma Mulher com uma Câmera

É incrível como o cinema tem a capacidade de envolver o espectador com uma boa história que não só conta, mas ilustra o quadro do homem na sociedade. O roteiro, a montagem, a direção de cena, e as interpretações são apenas alguns dos aspectos que dão vida a narrativas incríveis. É pensando nestas características que voltamos nossa atenção para o filme Ataque dos Cães, um longa da Netflix dirigido por Jane Campion e que estreou no Festival de Veneza em setembro de 2021.


A obra é complexa e possui muitos subtextos. Isso é fruto de uma direção experiente e sensível que opta por trabalhar enredos introspectivos e personagens problemáticos. A história é uma adaptação do livro de Thomas Savage, The Power of the Dog (Ataque dos Cães), e narra a história dos irmãos Phil e George Burbank e as tramas que vivenciam após a inclusão da viúva Rose e seu filho Peter na família.


O filme coloca na tela alguns elementos do western. Esse pontos são evidenciados principalmente no design de produção, nos figurinos e cenários, assim como nas paisagens retratadas na obra. Mas a narrativa não fica refém ao gênero, ela se desenvolve para além dele e propõe reflexões atuais que envolvem o sujeito contemporâneo.


As relações humanas estão evidentes nesta obra, já que há muitos conflitos gerados por conta destas aproximações. Uma delas é a relação conflituosa entre os irmãos Burbank. George passou muito tempo estudando fora, enquanto Phil cuidava do rancho e das terras da família. Porém com a volta do irmão instruído, ele passa a ser só mais um peão da fazenda, tendo sua autoridade confrontada.


Uma das características interessantes desta combinação é a forma como Phil tenta controlar George nos primeiros dias de seu retorno. Ele o chama de gordo, o critica e tenta desestabilizar o irmão que não se rende as abordagem e aos poucos vai se encaixando naquela realidade. Desta forma, casar-se com Rose seria, para além de um ato compassivo àquela pobre mulher, também uma estratégia para mostrar ao irmão que ele está no controle de sua própria vida.


Após a morte do seu primeiro marido, Rose cuida de seu filho sozinha e tenta enfrentar seus fantasmas do passado. Porém quando vai morar na grande casa dos Burbank, ela precisa lidar com a masculinidade tóxica do cunhado. E percebemos que todo este cenário ativa determinados traumas dentro dela, o que lhe ocasiona, por exemplo, problemas com álcool.


A relação entre ela e seu filho é harmoniosa. Peter é um rapaz andrógeno, meigo, que gosta de desenhar e estudar, mas que é oprimido dentro daquela cidade por não esconder sua sensibilidade. Mas, diferente do que pensamos, ele não é uma vítima. E é justamente no fato dele não render-se aos rótulos masculinos que encontra sua força. Aos poucos, a aparência de jovem ingênuo se dilui para uma figura misteriosa e astuta.


Jane Campion se dedicou bastante para este trabalho, ficando mais de uma década o preparando. Todo esse tempo acabou reverberando em um projeto muito forte e ao mesmo tempo singelo e detalhado. Esses são elementos que ajudam a contar a história sem expor explicitamente os confrontos que os homens travam entre si e sobre a natureza. Porém, essas figuras enganam-se pelos seus próprios impulsos provenientes de uma forma externa ou interna de enxergar o mundo.


Esta é uma obra cheia de detalhes que estão para além do que está posto explicitamente na tela. Um exemplo deste aspecto são as imagens que surgem pelas formas visíveis nas montanhas da região onde o filme se passa. Ao olhar-se para essas estruturas, cada um identifica algo diferente. Às vezes uma forma humanoide, uma paisagem, ou um animal. Mas esta característica também está na construção dos personagens, ao passo que vemos a história se desenvolver, também percebemos as camadas por trás das aparências. Esse é um aspecto que engloba todos os personagens da trama.


Uma outra questão que envolve o longa é a masculinidade tóxica e a misoginia dela resultante. O que é algo que afeta não só as mulheres, mas a vida dos homens em geral já que não conseguem viver de forma plena com nada do que os cerca. Esse é o caso de Phil, um sujeito turrão, agressivo e pouco sociável. O interessante é notarmos que por trás de toda essa rigidez, há um lado delicado que apesar de escondido, permanece vivo nessa figura. Phil faz de tudo para manter seu lado feminino em sigilo, reservando apenas alguns minutos por dia para viver seu segredo mais íntimo consigo mesmo.


Assistir Ataques dos Cães é como observar a madeira queimar na lareira vagarosamente e percebemos a transformação do seu estado físico. Esta é uma mudança sutil, porém repleta de potência e agonia também. Desta forma a diretora consegue colocar questões atuais em um filme de época. De nenhuma forma ela quer conduzir o olhar do espectador, já que muitas vezes prefere ocultar aquilo o que vemos ao invés de mostrar.


É por estes e outros motivos que Campion é uma excelente diretora e por isso que, a exemplo do drama O Piano (1993), Ataques dos Cães pode ser lida como mais uma obra-prima do cinema contemporâneo assinada pela diretora.

 

Raiane Ferreira é realizadora, montadora, critica e pesquisadora. É a criadora do canal Uma Mulher Com Uma Câmera, que busca refletir sobre as mulheres no cinema, tanto frente à câmera quanto atrás dela.

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