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  • Rodrigo Passolargo

A Jangada de Welles (2022): Sem mar, onde afogaremos as mágoas?

Texto de Rodrigo Passolargo

"O que é uma jangada?” É assim que Orson Welles inicia sua digitação na portátil máquina de escrever. O papel preso ergue suas pontas causado pelo balanço do vento litorâneo da Praia de Iracema. As batidas datilografadas alternam com o toque do charuto na mesa, numa premonição das cinzas que cairiam na história dessa orla. Aliás, cinzas que voam desde que a Praia do Peixe abandonou seu nome e "iracemou" seus cardumes para os gigantes colossais de mármore e cimento.


A Jangada de Welles documenta a trajetória do famoso diretor de Cidadão Kane e seu interesse pelos mares alencarinos. Dentre tantos contextos e recortes históricos, pontilhando caminhos no Mapa Mundi que vão dos Estados Unidos da América até Copacabana da Cidade Maravilhosa, existe um desenvolvido recorte, positivamente indo na contramão da insistência da política da desmemória de Fortaleza.


Jacaré foi um jangadeiro líder de um movimento que lutava pelos direitos trabalhistas antes inexistentes em sua classe. Ser dono de uma jangada custava caro diante da cara madeira que vinha do norte do país, causando aluguéis absurdos, sem contar inúmeras formas de exploração. Em protesto e alarmando a imprensa nacional, Jacaré parte em 1942 da Praia de Iracema com quatro amigos na jangada São Pedro rumo à Baía de Guanabara em busca de uma audiência com presidente Getúlio Vargas. Orson Welles que se encontrava na capital do Brasil para filmar o carnaval, tem contato com os heróis cearenses. O contorno entre Welles & Jacaré causa uma maré de reflexões sociais. A não menos importante - quiçá maior delas - possa ser a ótica sobre nossa não-ótica.


Ao ancorar em nossas praias em busca de documentar a essência dos jangadeiros e toda sua comunidade litorânea, Welles nos presenteia com um registro valioso da nossa história que foi desdenhada por nós mesmos. Mais primorosa benesse é o apuro investigativo de Firmino Holanda e Petrus Cariry diante dessas imagens descobertas em 1982, montando e narrando com maestria as areias avistadas pela luneta do estrangeiro Welles. Estas que confundem-se com as da ampulheta do tempo que corrói tal qual a maresia. Os rascunhos audiovisuais desse diário de bordo refletem os fragmentos de quem ainda resiste ao lado do reformado Mercado dos Peixes e outras pequenas lacunas.


Em tempos onde preferem erguer uma estátua do Almirante Tamandaré em vez de Jerônimo, Tatá, Mané Preto e Manuel Jacaré, A Jangada de Welles emana a tentativa “cinematomarítima” de um amante do cinema ao avistar um amante do mar e de seu povo. Testemunha movimentos inundados da atualidade, quando nós sequer deixamos nosso próprio povo levar suas mágoas para as águas fundas do mar: os retiramos das margens do Atlântico e arremessamos até hoje às margens da sociedade, dando as costas para serem engolidos pelas sombras de enormes colunas. Tudo isso ao meio de empreendimentos fartos de mediocratas vestindo calças novas de riscado e paletós de linho branco, surrupiados dos descendentes de Jacaré.


 

Rodrigo Passolargo é roteirista, escritor, produtor cultural cearense e crítico de cinema. Formado em Economia e graduando em História, com pesquisa voltada ao regional nordestino, cultura popular e armorial.


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