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A Fome de Lázaro (2020): Quem lambe nossas feridas?

Rodrigo Passolargo

Filme paraibano está em competição no 49º Festival de Gramado


O diretor Diego Benevides vai até o sertão paraibano para fazer um supra-serviço histórico na gravação de seu filme A Fome de Lázaro, onde acompanhamos os preparativos da tradicional Mesa de São Lázaro. Histórico porque ajuda através do registro das nossas raízes brasileiras no entendimento da famosa confusão entre os Lázaros do catolicismo. Aqui estamos lidando com o da parábola O Rico e o Lázaro narrada no Evangelho de Lucas (e não o Lázaro - O Ressuscitado - de Betânia). Acima, os dezessete minutos de filme nos é passível de interpretações nas nossas posições de Ricos e Lázaros.


Na parábola (a única que Jesus nomeia personagem principal), encontramos um homem rico que diariamente se fartava de grandes banquetes. Ao pé de sua porta na tentativa de matar sua fome, um mendigo leproso ansiava pelas migalhas:


“Um mendigo chamado Lázaro, coberto de chagas, fora deitado ao seu portão,

desejoso de fartar-se com as migalhas que caíam da mesa do rico; e até os cães vinham lamber-lhe as úlceras.

Morreu o mendigo, e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico, e foi sepultado.”

(Lucas 16:20-22)


A conclusão chega com o rico em Hades avistando ao longe Lázaro no seio de Abraão. O rico foi fadado ao tormento e Lázaro ao consolo.


A Fome de Lázaro registra alguns signos há tempos transportados pela tradição. A fartura dos pratos caminha um percurso curioso: se ontem eram pessoas que desfrutavam do banquete, a festa tem seu ápice com os únicos companheiros de Lázaro desfrutando a comida na mesa que ele nunca teve em vida. São os animais agora agraciados por minimizarem com suas línguas as feridas do santo. Não é à toa que no sincretismo religioso, São Lázaro é equiparado a Omulu/Obaluaê, orixás da medicina que também tinha um cachorro que lambia suas feridas de espinhos e picadas de mosquitos. Tal companhia faz jus aos cachorros de Asclépio/Esculápio (deus greco-romano da Medicina) de Hipócrates (377 A.C. Pai da Medicina), pois os cães sempre buscam alimentar-se com as ervas apropriadas quando se sentem doentes, dando dicas de plantas medicinais e tratamentos de enfermidades.


A fidelidade deles mediante a pobreza e necessidades do santo mendigo, assim como o fiel galgo que posa ao lado da figura de Dom Sebastião (este uma figura messiânica tradicional de nosso Nordeste) comunga com o significado de providência divina: Deus não o abandonou e o faz deleitar-se em outra vida ao lado de Abraão. Sendo também tema em outras culturas (que formam também o pensamento cristão/lusitano) do cão guardião: É Cérbero que protege as portas do inferno a mando de Plutão para que nenhum morto fuja. É Anúbis que julga e guia as almas. É Garm o sentinela dos domínios de Hela. É Xolotl que faz o trajeto com o Sol. Os cães dos índios ixis nos túmulos de seus jaz donos. São Lázaro não teria melhores amigos.


São inúmeras representações ao longo da história que nos aproxima do “melhor amigo do homem”. A esperteza canina era alvo de inúmeros debates, indagando se era possível tais animais serem tão puros ao ponto de cativar um lugar ao lado dos deuses. Lembremos do cordel O Dinheiro primorosamente adaptado por Ariano Suassuna em “O Auto da Compadecida” no famoso Testamento da Cachorra com Chicó e João Grilo sempre escapando da fome tal qual os anseios do santo em vida.


A película paraibana registra a “Santa Ceia” com os graciosos animais tomando lugar na festa da Mesa de Lázaro, aproveitando como nunca esse dia. Carregado de simbologia gritante num mundo que não mudou e ainda condena à marginalidade aqueles que encaram diariamente a miséria. Sejam Lázaros ou Cachorros, sempre à espera que seus donos-Reis despejem restos e migalhas.


Antes de refletirmos quem lambe nossas feridas, pensemos se nós lambemos as feridas dos marginalizados.

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