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35º Cine Ceará | A mnemosine e a tradição como manutenção da memória por meio do cinema e da regionalidade

  • Foto do escritor: Thiago Henrique Sena
    Thiago Henrique Sena
  • 10 de out.
  • 7 min de leitura

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Por Thiago Henrique Sena | Originalmente publicado no site da Abraccine (https://abraccine.org/)


Este texto celebra os 35 anos do Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, realizado em Fortaleza, de 20 a 26 de setembro de 2025, e apresenta os destaques do festival sob a minha perspectiva; além dos vencedores do Júri da Crítica, premiados pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) em parceria com a Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).


Como membro da Abraccine desde 2022 e da Aceccine desde 2016, tive a honra de compor o júri ao lado da jornalista e crítica de cinema Eduarda Porfírio, representante da Aceccine, e do professor, roteirista e crítico Celso Sabadin, também da Abraccine. Nossa responsabilidade foi avaliar e conceder o Prêmio da Crítica às produções das mostras competitivas: a Ibero-americana de Longa-metragem e a Brasileira de Curta-metragem.


Antes de seguir com a estrutura de diário, será dado um enfoque maior aos filmes vencedores escolhidos por nosso júri.


Vencedor da Mostra Ibero-Americana de Longa-Metragem

O documentário equatoriano Eco de Luz (2024), dirigido por Misha Vallejo, venceu o prêmio na Mostra Ibero-Americana de Longa-Metragem, distinguindo-se das demais produções exibidas no festival. A obra acompanha o diretor após receber fotos e câmeras antigas de seu avô, uma figura ausente em sua vida. A partir desse material, ele busca desvendar a história do avô, revelando não só um percurso pessoal, mas um retrato da sociedade equatoriana e da América Latina, com suas heranças coloniais.


O ponto forte do filme reside na imparcialidade do olhar: o público descobre com o diretor que o avô não era uma boa pessoa, o que redireciona o foco para a avó e os pais. O documentário expõe histórias de vida e uma complexa gama de sentimentos humanos, mostrando fragilidades e contradições sem julgamento moral, reconhecendo que as pessoas podem errar, arrepender-se e evoluir.


A linguagem visual e a fotografia são notavelmente belas, fortalecendo o caráter emocional da obra. O filme não traz apenas uma narrativa interessante, mas um retrato tocante de uma história familiar que poderia ser a de qualquer latino-americano.


Vencedor da Mostra de Curta-Metragem Brasileira

O curta Boi de Salto (2025), de Tássia Araújo, foi o vencedor da Mostra de Curta-Metragem Brasileira. A obra estabelece uma conexão íntima com as tradições nordestinas, ressaltando símbolos e linguagens regionais, além de explorar uma linguagem performática inerente e bem-vinda no cinema. O aspecto regional do sertão nordestino emerge de forma marcante nos trejeitos da personagem e no desejo peculiar da mãe.


Narrativamente, o filme dialoga com diferentes linguagens cinematográficas, transitando entre a ficção e o documentário. Sua força, contudo, reside na performance e no uso da mise-en-scène para transmitir não apenas as tradições locais, mas a importância do boi para a cultura nordestina.

A partir do destaque para os dois vencedores, as análises seguintes retornam ao formato de diário, apontando outros pontos positivos e negativos observados ao longo das noites de festival.


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Sábado, 20 de setembro de 2025 – Abertura

O festival abriu com o longa Gravidade (2025), de Leo Tabosa, protagonizado por um elenco de renome: Hermila Guedes, Clarisse Abujamra, Danny Barbosa, Marcélia Cartaxo e a participação especial de Helena Ignez.


O filme utiliza uma linguagem simbólica para abordar luto, aceitação e questões de gênero. Parece ser uma tendência do cinema contemporâneo tratar dessas temáticas por meio de signos já estabelecidos na indústria, adaptando-os para narrativas atuais.


A produção de Tabosa, conhecida por seus curtas, enfrenta um obstáculo que prejudica a experiência. A obra oscila entre cenas e diálogos que são, por vezes, excessivamente expositivos e, em outras, enigmáticos. Em alguns momentos, os diálogos explicam algo que já é mostrado pela imagem, enquanto em outros, tudo permanece subentendido. Isso gera um desequilíbrio, considerando especialmente a narrativa que o filme se propõe a construir. A impressão é de que a obra aspira a ser algo maior do que realmente é, o que acaba sendo prejudicial para a fluidez da história.


Além do elenco, outro destaque é a cinematografia, especialmente nas cenas noturnas e à luz de velas. Como as cenas captam a luz necessária para revelar sentimentos importantes em uma obra tão metafórica, é impressionante. Esse mérito não surpreende, pois a fotografia é assinada por Petrus Cariry, conhecido por seu excelente trabalho.


Domingo, 21 de setembro de 2025 – Segunda Noite

A segunda noite marcou o início da seleção competitiva de curtas brasileiros, com a exibição de Minha mãe é uma vaca (2024), de Moara Passoni. A história acompanha Mia, uma garota enviada pela mãe para a casa da tia no Pantanal, região afetada por queimadas.


Mia é introspectiva e conversa consigo mesma, carregando uma forte carga emocional em relação à mãe. O motivo do envio não é explícito, mas pistas surgem ao longo do filme. Esse sentimento é reforçado pela direção e pelos enquadramentos, que revelam o universo íntimo da personagem, como na cena em que ela, à beira do rio com um véu azul, faz uma oração pela proteção da mãe.


Em certo momento, Mia decide soltar uma vaca destinada ao abate e fugir com ela. A direção e a edição criam uma metáfora visual, reforçada pelo uso da técnica da “noite americana”, que, com um tom azulado e céu encoberto, confere à história um ambiente quase sobrenatural.


Segunda, 22 de setembro de 2025 – Terceira Noite

A terceira noite começou com Amores na Pasajen (2025), de Daniele Ellery, documentário que narra a história de mulheres brasileiras (cearenses) e da Guiné-Bissau em relacionamentos interculturais e inter-raciais. O filme explora suas percepções sobre o racismo e a xenofobia, utilizando a linguagem documental tradicional, com entrevistas e cenas do cotidiano.


O longa-metragem Do Outro Lado do Pavilhão (2025), de Emilia Silveira, também é um documentário. A produção acompanha duas mulheres negras e periféricas, Érica e Núbia, que se conheceram na prisão e mantêm a amizade fora dela. O filme possui uma estrutura interessante, combinando entrevistas com encenações feitas pelas próprias protagonistas. A diretora inclui uma cena em que uma tomada é interrompida, evidenciando a relação de confiança entre a equipe e as participantes.


O tom é sério e denuncia as condições precárias das prisões femininas no Brasil. A obra retrata o abandono e a solidão das detentas e ex-detentas, expondo falhas do Estado e das políticas públicas no processo de ressocialização, além da falta de acesso à defesa, recurso que parece acessível apenas a pessoas brancas e influentes. O filme denuncia abusos físicos e emocionais cometidos pela polícia e a injustiça do sistema prisional.


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Terça, 23 de setembro de 2025 – Quarta Noite

Nesta noite, foram exibidos filmes tanto da competitiva brasileira de curtas quanto da mostra Ibero-Americana. Os curtas brasileiros foram: Réquiem para Moïse (2025), de Caio Barretto Briso e Susanna Lira: documentário sobre o assassinato do imigrante congolês Moïse, morto em ação policial. O filme, com câmera móvel, registra a indignação e a frustração daqueles que buscaram uma vida melhor no Brasil e se depararam com violência e racismo.


Bandeira de Criança (2025), de João Toldi: mostra uma brincadeira infantil e uma briga tensa envolvendo a ameaça de arma de fogo do pai de uma das crianças. O filme retrata as violências e os estereótipos ligados às relações parentais.


Fogos de Artifício (2025), de Andreia Pires: resgata a energia dos curtas cearenses produzidos na década passada, com participações de figuras reconhecidas do audiovisual local. O filme evoca uma forte nostalgia e apresenta atuações sólidas e um excelente plano-sequência que celebra a juventude e os costumes fortalezenses. É uma obra divertida, engraçada e bem realizada.


Para encerrar a noite, foi exibido o longa porto-riquenho Esta Isla (2025), de Lorraine Jones e Cristian Carretero. A produção, uma história envolvente sobre juventude, crime e a tentativa de romper esse ciclo, segue a estética de road movie, exibindo o interior e o litoral de Porto Rico. Embora a beleza das paisagens e o carisma dos personagens sejam notáveis, o ritmo lento, possivelmente devido à montagem, prejudica a fluidez.


Quarta-feira, 24 de setembro de 2025 – Quinta Noite

O primeiro curta da noite foi O Amor Não Cabe na Sala (2024), de Marcelo Matos de Oliveira e Wallace Nogueira, que narra a história de amor entre dois homens com deficiência visual. Embora seja ficção, a obra busca dar voz a pessoas frequentemente marginalizadas. Ao adotar uma linguagem próxima do documentário, o filme humaniza os personagens, possibilitando atuações marcantes em um tempo de curta-metragem.


O segundo é Canto (2025), dirigido por Danilo Daher. A obra retrata o drama de Débora, que precisa juntar dinheiro para pagar o aluguel. O filme explora uma linguagem ficcional que, com planos e interpretações precisas, transmite a urgência da situação vivida por milhares de brasileiros.

Por fim, Thayara (2025), de Mila Leão, traz uma reflexão sobre a identidade indígena por meio de tradições e apresentações de dança usadas para complementar a renda. A reflexão transcende a personagem, alcançando diretamente o público.


Quinta-feira, 25 de setembro de 2025 – Sexta Noite

Na última noite de exibições, foram apresentados o curta Peixe Morto (2015), de João Fontenele, e os longas Ao Oeste, em Zapata (2024), de David Beltrán i Mari, e Um Cabo Solto (2025), de Daniel Hendler.


Antes de falar dos filmes, é possível fazer um balanço geral do festival, cuja curadoria apostou em uma linguagem mais documental e com um tom combativo, focando nas injustiças e no cotidiano latino-americano. O curta de João Fontenele adota uma narrativa do cinema contemporâneo, centrada no presente, e desenvolve bem as relações entre os personagens, que são seu ponto forte.


O documentário Ao Oeste, em Zapata despontou como favorito, contando uma história comovente de uma família. O filme se destaca pelas cenas e pela fotografia exuberantes, filmadas em um pântano, além do drama familiar que impulsiona a segunda parte da narrativa.


Um Cabo Solto apresenta uma espécie de fuga, com uma estética de filme policial adaptada para a América Latina. Ao retratar pessoas e paisagens da Argentina e do Uruguai, a obra se torna misteriosa, carismática e, por vezes, engraçada. O motivo da fuga do protagonista não é claro, mas podemos inferi-lo pelos diálogos e ações.


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Sexta-feira, 26 de setembro de 2025 – Encerramento

Este último dia de festival foi dedicado à celebração. Os filmes exibidos durante a semana se reuniram no palco para receber seus merecidos prêmios. Destacaram-se o aclamado Eco de Luz e o curta Boi de Salto, que receberam os prêmios do Júri da Crítica Abraccine em parceria com Aceccine com as seguintes justificativas:


  • Eco de Luz: “Pela linguagem simbólica do cinema, pelo uso das memórias familiares que representam vestígios e violências da colonização da América Latina.”

  • Boi de Salto: “Pela autenticidade e ousadia de representar a tradição do boi bumbá do Nordeste, através da linguagem cinematográfica que transita entre a ficção e o documentário.”


Também mereceram destaque Ao Oeste, em Zapata e Um Cabo Solto, premiados em categorias importantes como direção, fotografia e atuações, respectivamente, pelo Júri Oficial. Diversas outras produções, tanto da mostra principal quanto do Olhar do Ceará, foram reconhecidas.


Encerro meu texto e a última noite do festival com um viva ao Cine Ceará, por sua resistência e coerência ao longo dos anos, e um viva ao cinema cearense, complexo e humano.

PARCEIROS

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