top of page
  • Eric Magda

Alice Júnior (2019): Trilhando um caminho para o protagonismo trans


Entre os filmes com narrativas adolescentes, é recorrente a identificação de certo olhar direcionado mais à branquitude e também a cisgeneridade, pois é comum que ‘coming of age’ tenham foco em histórias sobre jovens cis e brancos. "Alice Júnior", com roteiro de Luiz Betazzo, produção de Andréa Tomeleri e direção de Gil Baroni, quebra com a parte cisgênera dessa ideia de filmes sobre amadurecimento ao ser protagonizado por uma mulher trans, Anne Celestino Mota.

Contando a história de uma jovem YouTuber trans recifense forçada a se mudar para Araucárias do Sul e lidar com uma sociedade extremamente retrógrada, a obra marcou presença em festivais como Berlim, Brasília, Mix Brasil, Festival do Rio e o 33º aGLIFF, de onde saiu premiado como Melhor Longa-metragem de Ficção. Um dos pontos fortes do filme é a inovação ao contar a história de uma jovem trans segura de sua identidade que conta com o apoio de sua família, pois existe grande importância em não perpetuar uma narrativa de sofrimento como única possibilidade para travestis.

Falando sobre a protagonista do filme, a própria atriz é YouTuber e tem isso em comum com sua personagem. Anne Celestino nos apresenta uma personagem forte e muito boca suja, consciente sobre seu local numa sociedade patriarcal, machista e transfóbica. A atriz tem um bom alcance mostrando as múltiplas facetas de Alice, especialmente por ser capaz de fugir muito de uma personagem trans extremamente oprimida e trazer uma heroína disposta a mudar às amarras dessa sociedade preconceituosa.

Inclusive, mesmo com a mudança de ambiente da personagem do filme, seu desejo não é sobre ser aceita dentro da sociedade, mas sim dar o primeiro beijo. Por todo o filme, esse desejo é superior ao seu sofrimento devido às atitudes transfóbicas dos demais personagens. Uma jovem assumidamente trans desde seus onze anos, mesmo vinda de uma capital, já pressupõe todo um enfrentamento de instituições e pessoas transfóbicas por anos. É muito sobre a possibilidade de reagir de cabeça erguida e o filme consegue abordar essa ideia muito bem.

É importante a relação saudável entre Alice e seu pai (interpretado por Emmanuel Rosset) e a forma como o próprio é extremamente defensivo sobre sua filha e respeitoso diante da sua identidade. A ideia de um pai amoroso e protetor seria melhor vendida se o filme não desse seu pontapé com o personagem decidindo expor sua filha a um ambiente extremamente preconceituoso à mesma. Mesmo assim, a ideia de um homem cis com uma filha trans, cuja transexualidade não é um obstáculo entre os dois, é algo revigorante de se ver nas telas do cinema.

O longa-metragem trabalha muito bem com os recursos tecnológicos, mas poderia ter aproveitado mais os mesmos. Talvez a ideia de Alice ser uma YouTuber possa se tornar uma ideia pouco perdida, com a única função de dialogar com a realidade da atriz que a interpreta e poder usar vídeos (hilários) da Gretchen. A maior fonte de interação da protagonista com outras pessoas trans é exatamente esse veículo e a obra não dá material suficiente para notarmos a importância que é de pessoas trans falarem de si para outras pessoas trans.

Isso remete a um dos grandes problemas do filme, pois termina expondo uma ideia cisgênera demais da realidade de pessoas trans. É importante reconhecer o fato do filme ser dirigido, produzido e roteirizado por pessoas cis e compreender que há um peso nisso. Mesmo com as contribuições de Anna Celestino, ainda é um homem cis assinando o roteiro. Inclusive, torna-se impossível não mencionar o quanto o filme cai em lugares muito previsíveis e usa de diálogos caricatos. Como dito previamente, ele não foge do que muitos filmes adolescentes fazem, mas o uso recorrente de ‘memes’ datados se torna um pouco cansativo.

Para quem é esse filme? Questionar isso é reconhecer o fato do audiovisual ainda ser, especialmente aqui no Brasil, uma arte voltada para uma ‘maioria’ cis e branca. Não justificando ou criticando, mas é um filme feito por pessoas cis e onde frequentemente perpetua a ideia de pessoas cis serem salvadoras das pessoas trans. Mesmo assim o filme trabalha um quesito bem importante que é a relação das mulheres trans e travestis com gays cis e brancos, mostrando o quanto os mesmos também têm uma visão preconceituosa muitas vezes.

A história falha apenas quando se trata de uma representação racial, por ter apenas um personagem negro relevante interpretado por Matheus Moura. Esse personagem tem uma função dramática de não ser transfóbico e de ser desejado pela protagonista como um ‘fruto proibido’. Talvez reconhecendo ainda o racismo presente na audiência brasileira, falar sobre ser trans e dar profundidade à personagens étnicos seja demais. Mesmo assim, é uma das falhas impossíveis de se ignorar.

Sendo um filme lançado nos cinemas brasileiros, mesmo em momento de pandemia, é um marco Alice Júnior contar essa história, mas não se deve deixar de questionar a ausência de outras pessoas trans no filme ou muitos dos estereótipos narrativos do mesmo. Cinema é uma arte colaborativa e pensar nos seus efeitos sociais é extremamente importante. Alice Júnior é um ótimo filme adolescente que conta uma história para o público cis e branco, deixando um pouco a desejar quando se trata de deixar pessoas trans tomarem as rédeas de suas histórias.

bottom of page