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  • Daniel Araújo

A Fome que Devora o Coração (2020): a jornada da heroína de múltiplos desejos


Em uma rua deserta, Vânia caminha na noite de Fortaleza. Sozinha, ela segue serenamente na busca por quem quer que seja ela mesma. Mais que um filme de personagem, A Fome que Devora o Coração (2020) é também uma obra sobre busca. Sobre a procura por si mesmo, mas não a partir de um equivocado senso de autoengano. Nossa protagonista se conhece, na verdade. Sua jornada, de fato, é pela trilha do caminho desviante, incerto e sombrio, em alguma medida.

Escrito e dirigido por Raiane Ferreira (e composto por equipe formado apenas por mulheres), o curta parte de um desejo de dar voz a essa jornada do feminino. Desse corpo e dessa subjetividade que transita entre os espaços externos e internos da vida social de uma metrópole como Fortaleza. Essa modulação entre uma abordagem naturalista mas também fantástica colocam o filme em um lugar muito potente em que a obra audiovisual não encontra-se engessada nos limites que a abordagem do gênero pode ocasionalmente expor.

É interessante falar nessa proposição intergênero porque a estória inicia-se fortemente calcada nesse senso de representação da realidade e sequência a sequência se metamorfoseia para uma construção fantástico-realística. Por isso, pensar na ideia do sonho interessa aqui. Afinal, Vânia vive sua realidade cotidiana em perspectiva.

Ela está trabalhadora, depois, dona de casa e vice e versa. À noite, ela sonha. E é no campo do onírico que um rompimento ocorre. Algo na esfera do seu inconsciente a chama. Ela inicialmente se assusta. Mas entende que esse chamado é algo que brota de dentro dela mesma. Nesse momento, ela se abraça e um novo movimento se inicia em sua vida.

A exterioridade a chama e ela se permite esse movimento. Talvez por isso ela seja a heroína da sua própria jornada. Diferentemente do que Campbell propunha para seu herói de mil faces, nossa protagonista não recusa o chamado da aventura. Ela se lança mesmo. E no seio da cidade se permite perceber as coisas ao seu redor a partir daquilo o que seus olhos e mente veem. Um casal hétero se beija em via aberta, um casal homo se beija em uma praça da cidade.

Pelos olhos de Vânia, não há cisão entre aquilo o que sua retina apreende e sua mente processa. Mas apesar dessa construção proposta, nunca conseguimos apreender o que essa mulher sente, de fato. Entendemos que ela está sentindo algo, mas isso dificilmente se materializa por meio de alguma verbalização ou movimentação expositiva que seja. E isso é algo ótimo. Considerando o olhar do espectador, são múltiplas a leitura daquilo que atravessa a personagem.

E assim como Michelangelo Antonioni (1912-2007) concebia figuras intransponíveis na sua cinematografia, Raiane também opera essa frutífera lógica na construção de um arquétipo que não está dado, perfeito. Essa jovem Fortalezense não precisa nos convencer a nada. Da sua boca, as palavras quase não surgem. Para entendermos o que ela quer nos dizer, temos de olhar além daquilo o que a tela imprime. Lembram de Monica Vitti em A Aventura (1960)? De modo semelhante, Vânia vaga por um oceano de perguntas sem respostas. E tudo bem não tê-las.

A exemplo da musa italiana, ela só vai, meio sem rumo, indo aonde seu desejo a impulsiona. Mas diferente daquela mulher do clássico italiano, nossa heroína independe desse outro materializado na figura do homem enquanto uma espécie de “metade perdida da mulher”. Sua busca, ao contrário, passa a ser, de fato, por ela mesma. Por isso a mitologia funciona tão bem aqui. Afinal, que feminino é esse que intenta se perder para que, enfim, possa se achar?

Talvez uma metáfora em contraponto político àquilo o que o imaginário da sociedade brasileira em 2020 propõe à “mulher para se casar”. Errante, essa feminilidade subjetiva aceita os riscos da realidade. Quando a violência à ataca, ela não resiste. Quando o abuso à aborda, ela o rebate. No limite daquilo o que a vida real a impõe, essa personagem busca se moldar à forma da situação que a todo custo tenta lhe tolher enquanto indivíduo e enquanto corpo dotado de subjetividade.

Sozinha na noite da nossa cidade, ela caminha. Não sabe o que verdadeiramente vai encontrar e isso é o que a dota de força. Diante do espelho, ela se verá uma primeira e derradeira vez. Rainha de si, ela não teme mais a escuridão que a ronda e se deixa por ela ser abraçada. Coroada como senhora do seu destino, seus olhos marejam no reflexo da sua interioridade, agora, desvelada. Nossa protagonista passa a entender-se enquanto forma e conceito. Afinal, ser livre é, entre tantas coisas, ter a exata noção de tudo isso.

Publicado pelo Autor no site Daniel Araújo

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