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  • Arthur Gadelha

Synonymes (2019): A liberdade ineficaz


Há uma grosseria compactuada entre a interpretação que Yoav faz do país estrangeiro e a estética do próprio filme que o registra. Dirigido por Nadav Lapid, "Synonymes" é um filme cujo formato turbulento começa na montagem acirrada, confusa no próprio ritmo, e caminha pela inserção de uma inesperada subjetividade da câmera. Num primeiro impacto, talvez esse atrito possa expulsar um espectador desatento, mas a sedução posterior parece inevitável. Isso porque a forma puramente estética desta obra é uma construção que depende de seu protagonista, expondo uma vontade de expandir a condição para quem assiste: como é ser estrangeiro? Yoav mudou-se para Paris após um conturbado passado militar em Israel, e tudo o que tem para ajudá-lo nessa transição precisamente cultural é um dicionário de palavras. Com menos de cinco minutos de filme, tem seus pertences roubados e a história, portanto, parte de uma situação perfeita de desolação social: sem língua, calor, conhecimento ou amigos, poderia morrer ali mesmo de frio. Caminhando frenético pelas ruas de Paris, ele repete incontáveis palavras em francês, tratando a língua como o elemento mais religiosamente importante para uma transferência (ou construção) de identidade. É nesse momento que a câmera de Lapid confunde ao encarnar uma figura enérgica e desregulada que só parece ser o próprio Yoav - logo descobrimos que é como uma terceira visão, o filme que se despe da forma bonita pra se perder na cidade com a cabeça baixa para não causar estranheza. É por essa eterna sensação de insegurança que a atuação de Tom Mercier na pele do forasteiro convence pela dubiedade - ora tímido e medroso, ora vestido sob a pele do sobrevivente “infiltrado”. Para dar corpo a esse drama de pertencimento, o roteiro, alusivo à experiência do próprio Lapid, investe em tramas paralelas que nunca precisam se encontrar ou se resolver. O casal burguês, o amigo, o trabalho, as aulas de “identidade francesa”... Nessa última, é curioso a forma como Yoav desconfia da lei que ele mesmo teatraliza em sala: igualdade, liberdade e fraternidade. É possível deixar de ser estrangeiro no país da "liberdade"? A pergunta, na realidade, amplia-se sobre o contexto generalizado da crise nas migrações na Europa, rendendo cena curiosas como a da liberdade na “fronteira”, porque a obra parece confirmar a impossibilidade de um resultado positivo do atrito entre a resistência de um novo país e o apagamento cultural imposto por diferentes frentes. Yoav não suporta, e nós, do lado de cá, muito provavelmente também não. É curioso que "Synonymes" seja produzido por Saïd Ben Saïd, produtor de carreira do brasileiro Kleber Mendonça Filho, cujos filmes também refletem afirmações (ou recusas) identitárias em meio às transformações no campo político-social. Porque, a pensar bem, nessa briga entre a composição, defesa ou expurgo da língua como instrumento da memória, esta obra talvez não esteja tão longe de "Bacurau". Laçando a apatia de Yoav com o restante do mundo desolador, "Synonymes" pode assustar também por ter uma atmosfera opaca, fria. Mas, apesar disso, surpreende também ao deixar claro que uma história sobre a negação de identidade também pode ser divertida e até realmente engraçada por um humor que está nos gestos, na imprevisibilidade dos acontecimentos e até mesmo na delicada atuação de Mercier. Yoav carrega, afinal, um pouco dos desejos de ser ao mesmo tempo “daqui” e de lá, embora muito provavelmente de lugar algum, como se querer ser livre já fosse o bastante diante do conceito complexo e inalcançável de liberdade.

Publicado pelo Autor no Quarto Ato

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