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  • Thiago Henrique Sena

18º Noia: da dor do fazer artístico


O 18º Noia - Festival de Audiovisual Universitário aconteceu esse ano na sala de projeção do Sesc Ceará. A seleção de filmes da curadoria mostra um apontamento importante para nossa realidade atual no Brasil. Um país no qual cada dia um Governo retira direitos e persegue minorias, a seleção de filmes que tenham como objetivo fazer frente a essas políticas públicas certamente se faz necessário. O júri da crítica da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine), ficou responsável pela a escolha de melhor curta-metragem da Mostra Brasileira de Cinema universitário. Ao todo, foram 13 filmes. Estes foram distribuídos em duas sessões, a primeira com 7 filmes e a segunda com 6. Embora o cinema cearense estivesse presente com apenas dois representantes, o cinema nordestino dominou com 6 filmes. Importante dado para a valorização de um cinema regional e plural produzido no Nordeste brasileiro. A primeira sessão contou com 7 filmes. Todos os filmes interessantes. Vou me deter sob três em especial, pois foram os que me chamaram mais atenção. O primeiro deles é "Copacabana Madureira" com direção de Leonardo Martinelli. Esse filme propõe uma reflexão e um olhar crítico e irônico do Brasil de 2018. Um país dominado pela cultura de ódio e pelas notícias falsas, essas que foram fundamentais para a eleição do presidente que alimenta esse ódio e persegue as minorias deste país. O documentário é bastante ágil, sua montagem talvez seja sua maior virtude. Constantes cortes e diversos racords (alguns bem incomuns para a linguagem do documentário) dão um ritmo frenético ao filme. Ele também faz uma crítica, principalmente aos jovens que fazem oposição apenas pela internet. A criação de hashtags e de uma cultura de “combate” virtual são alvos também, enquanto pessoas criam estas tags e são bastante ativas nas redes sociais, outras morrem em decorrência da violência propagada pela cultura do ódio e da milícia dos nossos governantes. O segundo filme que escolhi escrever é o "Bicha-Bomba", direção de Renan Cillo. Novamente, em um país no qual os índices de morte da população LGBT+ é um dos mais elevados do planeta. O documentário utiliza de imagens de arquivo do próprio realizador, enquanto uma voz off vai narrando a história de uma criança que foi espancada e morta pelo próprio pai por ser “afeminado” demais. O filme é um soco no estômago, o relato é muito forte e o contraste com a imagem de arquivo faz gerar um sentimento de indignação e tristeza pelo que aconteceu. Essa forma de contar histórias já é bastante comum nas terras alencarinas, filmes como "A Festa e os Cães" (2015) de Leonardo MouraMateus e "Monstro" (2015) de Breno Baptista utilizam do mesmo recurso estilístico, imagens de arquivo e narração, geralmente em tom confessional. "Bicha-Bomba" mantém esse estilo e traz consigo um tema necessário para reflexão da nossa sociedade. O último filme do primeiro dia também é o vencedor do prêmio de melhor curta-metragem do júri da crítica. Trata-se do filme "O Verbo se Fez Carne", direção de Ziel Karapotó. Em um tom experimental, o curta traz consigo uma performance com um excepcional trabalho de som. O desenho sonoro e o entrelaçar dos cantos são o grande chamariz do filme, aliados com uma imagem forte, senso crítico e uma urgência no tema a ser abordado. Em um país como o Brasil que, desde sua invasão em 1500, vem com uma política de extermínio dos povos indígenas, por meio do genocídio e etnocídio, e que devido ao atual presidente reforça essa cultura de violência, o surgimento desse filme se faz necessário para reforçar a tradição de um povo e lutar para sua sobrevivência. Certamente "O Verbo se Fez Carne" é um dos filmes mais necessários e atuais. A segunda noite de festival contou a presença de 6 filmes. Embora pessoalmente eu tenha gostado mais dos curtas-metragens da primeira noite, há dois que se destacam. O primeiro é "Jason", direção de Paulo Sérgio Garcia. O filme é um documentário sobre a vida de Jason que vive entre seus estudos na cidade e seus pais no campo. Essa dicotomia cidade e campo lembrou tematicamente os filmes de Abbas Kiarostami - há inclusive um plano que poderia facilmente ser confundido com o planos do cineasta iraniano. O filme está longe de ser perfeito, e mesmo com alguns defeitos, consegue contar sua história e mostra a relação do protagonista com suas duas vidas e como a agricultura familiar é importante para o sustento de seus pais. Talvez se tivesse abandonado um pouco a linguagem do documentário e tivesse proposto uma ficção em cima do tema, ou até mesmo uma linguagem mais híbrida como em "Close Up" (1990), de Kiarostami. Por fim, o último filme que gostaria de falar é "Torcida Única", direção de Catarina Forbes, ficção autobiográfica segundo sua realizadora. O filme fala de Laura, de sua paixão por futebol, esporte mais popular do país, e da relação familiar com seu pai e irmão. O filme fala sobre a cultura machista do futebol, no qual ir ao estádio sendo mulher seria mais perigoso que ir sendo um homem. O plano final é justamente sobre isso, a paixão de Laura pelo São Paulo não é menor que de seu pai e irmão, por exemplo, e mesmo assim ela segue presa em casa. Imediatamente lembrei do filme "Offiside" (Fora do Jogo, 2006) do diretor iraniano Jafar Panahi - neste filme acompanhamos a história de uma menina que gostaria de ir ver o jogo da seleção do Irã, prestes a ir para uma Copa do Mundo depois de muitos anos. No Irã, durante a época do filme, as mulheres eram proibidas de ir ao estádio correndo o risco inclusive de serem presas. "Torcida Única" traça um diálogo interessante com o filme de Panahi, talvez se tivéssemos visto Laura indo escondia ao estádio ou desafiando essa cultura o filme poderia ter ficado bem mais forte. O 18º Noia - Festival de Audiovisual Universitário é tradição da cultura de festivais da cidade de Fortaleza. Em um ano tão ruim, sua realização e resistência são importantes para que a cultura e a arte enfrentem o medo e o ódio. Mesmo que as condições físicas da sala não tenham sido as ideais e que isso talvez possa ter prejudicado um pouco a experiência de cinema, principalmente no aspecto sonoro. Fica registrado o esforço para resistir perante aqueles que nos querem silenciar. Aos realizadores, fica a admiração por ainda ter gana e vontade de produzir cinema no Brasil, e mesmo com os problemas técnicos, comuns aos filmes produzidos em universidades, a necessidade de se fazer cinema se supera; e da dor do fazer artístico nascem obras que são importantes para nossa sociedade. Thiago Henrique Sena integrou o júri Aceccine do 18º Noia - Festival de Audiovisual Universitário, em dezembro de 2019. Confira os filmes premiados.

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