top of page
Arthur Gadelha

Roma (2018), de Alfonso Cuarón


Com rigor de um cinema que cultua as sensações do espaço físico, Alfonso Cuarón filmou a guerra, Hogwarts e até mesmo o universo; tudo numa medida muito próxima de devoção. O plano-sequência inicial de Gravidade assusta tanto quanto as duas voltas que dá pela sala da patroa enquanto Cléo, de Roma, caminha por ela. Assusta também, e creio que seria impossível fugir disso, a extrema pessoalidade do que constrói Roma, uma visão de Cuarón sobre o próprio mundo que não pôde observar enquanto criança. Tanto tempo depois, a empregada que lhe ensinava canções de ninar em língua ameríndia continua viva, na tela do cinema ou do seu iWatch, como personagem de uma aguerrida, porém silenciosa, América Latina.

Cuarón evoca essa história como milagre do cotidiano e da estética, um filme sobre a constante destruição, da família ou de uma México efervescida nos sobreturnos, presa nos entreatos, revelada como surpresa apenas para a plateia – afinal, Cléo não faz parte da família, assim como a Val de Que Horas Ela Volta? e tampouco da sociedade que dizimou seu povo e que, “agora”, está em guerra.

Perto do início, na despedida de Antonio, a passagem da banda pela rua transforma a sensação a seguir, assim como o avião que despenca no cinema antecedendo o término de uma ilusão. O balé de Cuarón respeita o silêncio, ainda mais que Gravidade, e pede permissão para entrar lentamente no cotidiano dessas pessoas. Na voz calada e medrosa de Cléo está toda nossa história, e a ausência de algo que ultrapasse essa constatação pode afastar os curiosos por um entrelace que revire a obra. Cuarón edifica a figura de Cléo da mesma forma que abraça os espaços que passam a lhe pertencer. O terraço das empregadas, a floresta que queima ao som da terra, o mar negro que chicoteia contra a coragem, o terremoto que antecede as ruínas do convívio urbano, são muitos os exemplos de uma narrativa quase religiosa aos significados visuais de seus momentos.

E em todo esse cenário, a "elite" de Roma não é como a de O Pântano, de Lucrécia Martel, pois é atenciosa e parece demonstrar lucidez nas condições de classe que "dividem" aquela Terra do restante da família. Nada disso, porém, é suficiente quando a mesma família precisa intervir num dos momentos mais desesperadores da mulher que viu seus filhos crescerem. Por ela, há um sentimento fiel e Cuarón registra essa complexidade num horror arrepiante como a eterna contradição da nossa América.

Por mais de duas horas, Yalitza Aparicio faz de Cléo uma personagem tão reprimida que aqui do outro lado da SmarTV é ainda mais angustiante perguntar sobre sua felicidade. Sua atuação é de uma fisicalidade emocionante, e por isso sustenta tanto tempo até mesmo sem coadjuvante, pois depois de Cléo, esse filme só pertence a Cuarón, o personagem escondido no deslumbre quase onírico do preto & branco.

Com essas paralelas construídas aos poucos, Cuarón alcança seu trabalho com mais rigidez. Há um interesse pelos signos da montagem, seja na evocação da chegada de um carro ou no grafismo de momentos “tão importantes” que passam por nossos olhos como se fossem background. Roma é um olhar para dentro, e por isso lhe cabe ser simples com um roteiro estruturado para intensificar o modo como Cléo se sustenta à realidade. Uma história tão silenciosamente cruel que é da contemporaneidade de Anna Muylaert, Kléber Mendonça Filho e Gabriel Mascaro; da “pobreza” revoltosa do Cinema Novo de Glauber Rocha e Leon Hirszman; uma história que tenta se consertar, mas se repete no Brasil, no México, como também nos subúrbios dos “novos mundos” no hemisfério norte. É essa história que tanto a gente precisa pensar.

Publicado pelo Autor no site Quarto Ato

bottom of page