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  • Thiago Sampaio

Bohemian Rhapsody (2018), de Bryan Singer


Toda cinebiografia está sujeita à visão do seu realizador, sendo inevitável o julgamento por parte de fãs por falta de fidelidade de alguns fatos, adaptação e compilação de outros. Se tratando de uma das bandas mais transgressoras de todos os tempos como o Queen, o nível de exigência é elevado ao cubo. Porém, muitos esquecem a diferença entre um documentário e ficção com liberdades criativas, caso deste “Bohemian Rhapsody” (idem, 2018).

O papel da crítica, no caso, é avaliar o longa-metragem da maneira como ele fora feito e não como poderia ser. O Queen merecia uma direção com tons experimentais, assim como era o som da banda? Um maior aprofundamento das excentricidades de Freddie Mercury? Talvez. Mas aí estamos falando de algo que existe apenas no imaginário de muitos. O filme que foi feito tem uma estrutura apenas correta, de fácil apreciação e que acerta ao emocionar utilizando a principal ferramenta do quarteto: a arte!

Na “história”, Farrokh Bulsara (Rami Malek) e seus companheiros Brian May (Gwilyn Lee), Roger Taylor (Ben Hardy) e John Deacon (Joseph Mazzello) mudam o mundo da música para sempre ao formar a banda Queen, durante a década de 1970. Porém, quando o estilo de vida extravagante de Mercury começa a sair do controle, a banda tem que enfrentar o desafio de conciliar a fama e o sucesso com suas vidas pessoais cada vez mais complicadas.

A produção passou por uma série de problemas. Sacha Baron Cohen, que interpretaria inicialmente Mercury, escreveu o roteiro por anos e pulou fora do projeto por “divergências criativas” (leia-se, dar maior peso às polêmicas). O diretor Bryan Singer (de quatro filmes da franquia “X-Men”) abandonou as filmagens, que foram concluídas por Dexter Fletcher (da ainda inédita cinebiografia de Elton John, “Rocketman”, 2019). Tudo isso pesa, além do fato de Bryan May e Roger Taylor, integrantes originais da banda (John Deacon se afastou dos projetos “pós-Freddie”), atuaram ativamente nas decisões, com crédito de produtores.

Aqui, os demais músicos são retratados como caras que sequer passam perto de drogas, levam suas esposas para o estúdio e tiveram contribuição direta na composição das músicas (o que neste caso, não deixa de ser verdade). A real estrela do longa é Mercury, figura que horas e horas de projeção não seriam suficientes para retratar tamanha complexidade. Não tem como negar que os 134 minutos soam como um novelão, com a fórmula da ascensão, queda e renascimento, cheio de diálogos artificiais e frases de efeito. Mas há de reconhecer que conseguir compilar 30 anos de carreira de um grupo tão peculiar de maneira coesa, mesmo com tantos empecilhos, não é nada fácil.

O primeiro ato é bem atropelado, sim. Os componentes logo se conhecem e, com exceção de um pneu furado de uma van vendida para gravar uma demo, a elipse que marca a passagem de tempo para o sucesso é abrupta. Singer nunca foi dos diretores mais criativos, mas faz o básico sem margem para brechas grotescas. Se a edição é rápida pela necessidade de mostrar o caminho para a fama, pelo menos há sacadas interessantes como o surgimento dos nomes das cidades onde os shows são realizados e as primeiras críticas negativas da mirabolante/genial “Bohemian Rhapsody”, através de citações reais em cima do emblemático início do videoclipe.

Mas levando em conta o público que vai assistir pela obra do Queen, o longa consegue espalhar quase todos os principais hits da banda de maneira admirável. As músicas não são mérito da produção (apesar de terem passado por remasterizações), mas embalam toda a narrativa. Por isso, vê-los quebrando padrões durante as gravações, utilizando moedas em cima da bateria, latas, cantos líricos oriundos da ópera (“Galileo”…?!), ali o espírito do Queen é transmitido. O filme pode até seguir uma fórmula para atingir o maior público possível, mas trata de deixar claro que a banda não seguia.

Se tem uma palavra que pode definir o grupo é autenticidade. Indo contra o tradicional, conseguia dialogar com o público através dos sons, por mais estranhos que fossem à época. A emoção de Mercury ao ver milhares de pessoas entoando “Love of My Life”, ou imaginando a reação de palmas sincronizadas que viriam ao ouvir o bater do pé no tablado compondo “We Will Rock You”, aquela é a ferramenta transformadora. O tiro certeiro num riff de baixo na introdução “Another One Bites the Dust” convence a todos que a mistura de rock com o estilo disco funciona, por mais que a criação não tenha acontecido daquela maneira na vida real.

Conseguir emplacar essa mistura nada convencional certamente foi um desafio.

Representando vários produtores, o personagem fictício vivido por Mike Myers, que recusa lançar a música-título do filme como single por ter mais de três minutos, rende um divertido “easter egg” ao dizer que os “jovens nunca vão bater cabeça no carro ouvindo isso” (lembrando que o ator e seu “Quanto Mais Idiota Melhor”, 1992, foi quem viralizou essa cena). A relação de Freddie e Paul (vivido por Allen Leech), uma espécie de “vilão” que o afastou dos companheiros de grupo, é cheia de pormenores, mas a essência está ali.

Não há tanto foco no envolvimento com drogas de Freddie Mercury, sua diversidade de parceiros ou sua degradação através do vírus da Aids. São fatos que o público conhece e, aqui, acertadamente, não tentaram arrancar lágrimas através do sofrimento ou impactar com o estilo de vida libertino. Pelo contrário, o roteiro de Anthony McCarten (“A Hora Mais Escura”, 2017) e Peter Morgan (“A Rainha”, 2006) prima por colocar no clímax uma das performances mais emblemáticas, no show beneficente do Live Aid, no estádio de Wembley, Inglaterra, numa audaciosa reprodução quase na íntegra.

É ali onde brilha a entrega do ator principal, Rami Malek (conhecido pelo seriado “Mr. Robot”), que apesar de não parecer fisicamente com Freddie, capta não apenas os trejeitos, mas a imensidão de emoções ao transmitir o som para o público. Ele reproduz pequenos tiques como o sugar dos (enormes) dentes, imita bem os movimentos no palco e não decepciona cantando, por mais que a maior parte das músicas sejam playbacks. A insegurança do início, passando pela soberba e um “choque de realidade” numa cena na chuva, tudo é digno de aplausos, apesar da estranheza inicial. A emoção nos olhos dele através da apresentação final é, sim, de arrepiar.

O resto do elenco está bem correto e cada um cumpre a sua função. Gwilym Lee (da série “Midsomer Murders”) mostra a presença fundamental de Bryan May como uma espécie de líder informal, por mais que o chamariz seja o vocalista. Ben Hardy (o Anjo de “X-Men: Apocalypse”, 2016), cumpre bem o papel de galã que tenta chamar a atenção, assim como era Roger Taylor. Joseph Mazzello (o moleque Tim, de “Jurassic Park”, 1993), é propositalmente apático como John Deacon era (e o roteiro até brinca com o fato dele ser relegado nas prioridades).

A carismática Lucy Boynton (de “Sing Street”, 2016), faz de Mary, a esposa/melhor amiga de Mercury, uma pessoa carismática, mas, acima de tudo, humana.

Algumas datas não batem, o vocalista do Queen tinha atitudes bem mais extremas, ele não conheceu Mary e Jim Hutton (seu companheiro até a morte, em 1991) daquela maneira. Ok. Mas a alma de um grupo que não se encaixava em rótulos e conseguiu fazer o mundo todo entender e dialogar com o “diferente” de maneira irradiante, está lá. Por isso, “Bohemian Rhapsody” termina de maneira mais do que satisfatória.

Publicado pelo Autor no site Tribuna do Ceará

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