top of page
  • Daniel Araújo

Corpo e Alma (2017), de Ildiko Enyedi


A experiência, de acordo com uma teoria, configura toda situação que compartilhamos com outras pessoas. Já a vivência, diria respeito a tudo aquilo o que sentimos a partir de situações configuradas na nossa individualidade, com nós mesmos. E da alternância entre os possíveis que emergem dessas situações foi que a veterana realizadora húngara Ildikó Enyedi criou seu lírico e visceral “Corpo e Alma” (2017).

Vencedor do Urso de Prata do Festival de Berlim de 2017, o longa conta a estória de Endre (Géza Morcsányi) e Mária (Alexandra Borbély), dois supervisores de um matadouro sediado no centro da Hungria, cuja rotina é alterada ao descobrirem que estão a dividir os mesmos sonhos todas as noites. Nos sonhos, ambos se encontram diariamente em uma floresta na forma de um casal de cervos. Eles decidem fazer com que seus sonhos se tornem realidade ao mesmo tempo em que procuram entender o sentido oculto neles. As respostas não virão com facilidade, entretanto.

O filme possui várias camadas que se desdobram em uma série de pontos. Começar pela escolha de um protagonismo partilhado é um tópico interessante. Afinal, Ildikó usa a ideia do par tanto em termos de linguagem, quando escolhe uma dupla de protagonistas, uma vez que Endre e Mária dividem esse lugar. Quanto em relação a uma experimentação de um novo locus para o que se convenciona chamar do star system cinematográfico, ou o casal com o qual iremos torcer na narrativa.

Claro, nós torcemos pelas duas figuras em cena, mas esse nosso acompanhamento enquanto espectadores não nos vem em forma de uma apreensão alienante, como quando nos deparamos com as comédias românticas de Hollywood. Como uma diretora bastante experiente, Ildikó constrói seus personagens muito minunciosamente e isso é exaltado muito veementemente por meio de tipos que sentem, ou mostram, em cena, o sentir das coisas de modo muito sutilmente.

A contradição, portanto, é uma das matérias primas da realizadora. E é daí que emerge boa parte da força que o longa contém. Ele apresenta personagens muito bem delineados, apesar das suas naturezas quase intransponíveis. Ou seja, muito do que queremos saber e acabamos descobrindo deles vem da nossa própria observação.

Sabemos que Mária possui uma disfunção cognitiva que a impede de ter qualquer contato físico mais direto com quem quer que seja. Mas isso em momento algum é exposto com a intenção de nos explicar o porquê ou nos rememorar por meio de recursos como flashback, por exemplo.

Do mesmo modo, vemos que Endre possui uma paralisia do lado esquerdo do corpo. Isso em momento algum é retomado a exemplo de Mária. Ambos possuem algo que os impedem de serem “plenos” psíquica e motoramente. Mas é dessa falta que eles se engrandecem porque rompem essas barreiras. Nesse momento, é que o filme novamente nos surpreende por não nos oferecer personagens estigmatizados. Sim, eles são disfuncionais, mas nem por isso são rascunhados como tipos que carecem de toda atenção ao redor.

Pelo contrário, já que na realidade que o filme trata, o desafio que eles têm de bater diz respeito a eles mesmos. É sobre a tarefa de vencer a si mesmos na busca diária por autoconhecimento. E aí, é mostrando as situações do cotidiano que o longa tece sua teia que nos apreende a cada sequência. E como é tocante ver a relevância que ele dispensa para o gesto como detonador das nossas conexões com as coisas do mundo em nossas vidas. Por isso, vermos Mária se refugiando numa fresta de sombra numa parede, ou sentindo o toque sutil de uma grama num vasto campo úmido são de uma grandeza incomensurável.

São esses elementos que fazem da arte cinematográfica uma experiência tão singular. Com qual constância vemos isso na tela? Bom, em suas 1 hora e 55 minutos, é isso que "Corpo e Alma" busca conosco partilhar. Dividir, no nível das experiências tudo o que temos de melhor em nós. Sem negligenciar, por outro lado, a inconsistência da dúvida, daquilo o que nos faz sentir medo por não entendermos. E é nesse momento que os problemas se potencializam.

Em seu clímax, o filme nos coloca contra a parede como se dissesse: bom, se você achava que esses personagens são vistos pala lógica x, então que tal os vermos pela ótica y? Então, é nesse momento em que sua classificação indicativa de 18 anos se justifica, seja pelo grafismo de uma situação em específico que ocorre neste segmento do longa, seja pelo tom dramático ali embutido. Temos um momento de definição na psique de uma das personagens, isso fica bem claro. Mas no fundo, torna-se difícil, entretanto, não percebermos um traço autoindulgente na escolha da diretora Ildikó Enyedi para com seus personagens.

Olhando por uma chave mais positivista, no entanto, mais vale acreditarmos que as decisões que ela toma no desenlace da trama se justifica pela aposta que a mesma faz no entendimento de que a amplitude dos gestos não vividos tem de triunfar ante o pessimismo do mundo como o entendemos e sentimos. É uma decisão muito pessoal e que só diz respeito ao autor como cineasta. No nível da apreensão do espectador, nos cabe lermos suas decisões e a partir disso partilharmos sentido disso no mundo. É pra isso que serve e sempre há de servir o bom cinema.

Publicado pelo Autor no Segunda Opinião

bottom of page