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  • Beatriz Saldanha

A Misteriosa Morte de Pérola (2014), de Guto Parente e Ticiana Augusto Lima


Uma tomada da praia: estamos no Ceará. Uma filmagem caseira em vídeo na qual predominam a intensa claridade do céu azul e o barulho retumbante das ondas do mar. Corta para a fachada de um velho prédio de arquitetura simples, mas evidentemente europeia. O tempo nublado reitera: não estamos mais no Ceará. Ao invés do barulho das ondas, temos os ruídos produzidos somente por ela, Pérola (Ticiana Augusto Lima), que carrega com dificuldade a bagagem subindo pela escadaria do antigo prédio em Chalon-sur-Saône, no interior da França. Lá, ela vai viver sozinha para passar um ano de estudos em Belas Artes, deixando no Brasil as pessoas que ama. Este trecho antecede a primeira parte de A misteriosa morte de Pérola, intitulada “Os fantasmas da solidão”, e o sinaliza como um filme de oposições, de ideias conflituosas que permearão toda a metragem e que provocam a sensação de estranheza, de desconforto. Isso porque Pérola deveria estar sozinha, mas percebe uma presença desconhecida à sua volta, que consegue sentir intensamente, mas a qual não é capaz de ver (exceto em uma apavorante sequência de pesadelo). Aos espectadores é dado um privilégio ao mesmo tempo desejado e repulsivo, aquele de poder ver o que os personagens não veem. Por mais abjeto que seja aquilo que vemos, estamos em vantagem e antecipamos a tragédia iminente, anunciada no próprio título da obra. Aliás, o ato de ver surge no filme como uma obsessão de dois lados: Pérola passa o tempo cobrindo janelas e portas de vidro, escudando transparências de modo a não ser vista, mas é tarde demais. Seu observador adentrara o apartamento. Na narrativa, os objetos adquirem uma força que vai muito além de sua função prática: de modo geral, o telefone aproxima pessoas e representa, é claro, a conversação, mas, no caso das ligações não consumadas por Pérola, ele imprime o vazio perturbador da impossibilidade da comunicação, situação reiterada pela quase absoluta ausência de diálogos durante todo o filme. As batidas incessantes do relógio reforçam a ideia do poder destruidor do tempo quando se coloca entre as relações humanas; a câmera, que tem participação decisiva na segunda metade, por sua vez, funciona como um dispositivo captador de fantasmas que habitam dimensões paralelas, o que faz de Pérola um filme metalinguístico, pois o que é o cinema senão uma máquina de capturar e eternizar fantasmas? O encontro entre a heroína e o seu observador, por fim, só se torna palpável através da filmagem. Pérola é ainda um filme de referências, algumas delas diretas, a exemplo das pinturas penduradas nas paredes do apartamento, que são incorporadas e ressignificadas. O almoço dos barqueiros, de Pierre-Auguste Renoir, evoca na personagem lembranças de casa, trazidas em um flashback com textura de filmagem amadora; em Santa Catarina de Alexandria, de Caravaggio, é deixada de lado a conotação bíblica para focar-se na expressão enigmática da mulher representada, no olhar que fita de volta quem a vê. A escultura Smoke with Satan, do artista contemporâneo Theo Mercier, surge no meio da cena de pesadelo e compõe uma galeria variada de obras de arte que fazem parte do repertório pictórico dos realizadores, uma característica interessantíssima dentro de um filme cujo poder da imagem é marcante. A referência cinematográfica imediata é o neo-surrealismo de David Lynch, mas também aqueles que trabalharam com a loucura decorrente do isolamento e da solidão, como Roman Polanski (Repulsa ao sexo, O inquilino), e Georges Franju, citado diretamente através de trechos de Os olhos sem rosto, o primeiro filme de horror realizado na França, em 1960, e da máscara que Pérola usa na segunda metade do filme. As máscaras, aliás, compõem detalhes que apontam para uma espécie de dualidade que marca toda a metragem, sugerida a partir do desenho da protagonista no pôster, cujo rosto está dividido em um lado mais claro e outro lado mais escuro. Essa particularidade fica ainda mais evidente na segunda parte, “As dobras da morte”, cujo próprio nome fornece uma pista para a compreensão de sua narrativa intrincada. A misteriosa morte de Pérola é um dos exemplares mais interessantes da nova cinematografia brasileira, em que jovens realizadores do Nordeste têm se destacado, além do âmbito nacional, em grandes festivais pelo mundo. Tendo sua primeira exibição internacional ocorrida no prestigiado festival de Roterdã, na Holanda, trata-se do quinto longa-metragem de Guto Parente e sua estreia como diretor solo neste formato. Realizado com poucos recursos e equipe reduzida (Guto e Ticiana, os únicos atores do filme, realizaram sozinhos a maior parte das funções técnicas, da fotografia e direção de arte à montagem), Pérola sugere uma reflexão, através de uma linguagem muito próxima dos filmes de horror, sobre a fragilidade das relações humanas e, de modo intimamente perturbador, faz um retrato aterrador da solidão. Publicado pela autora no catálogo da mostra Outros Cinemas em janeiro de 2017.

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