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David Arrais

Até o Último Homem (2016), de Mel Gibson


Desmond Doss era um jovem adventista que sonhava em ser médico do exército. Porém, para realizar esse sonho, ele teria que fazer com que o exército dos Estados Unidos, em plena ofensiva no Pacífico na Segunda Guerra, aceitasse um soldado que, por conta de sua orientação religiosa, se recusa a utilizar armas de qualquer natureza. Essa pequena premissa, que tem amplitude suficiente para preencher até mesmo um seriado com vários episódios, torna-se ainda mais intrigante quando aprendemos que esta é uma história real, de um homem que, sozinho, salvou dezenas de companheiros na sangrenta batalha da cordilheira de Hacksaw, em Okinawa, em 1945. Agora, provando que mais importante que saber como uma estória termina e como ela acontece, esta narrativa ganha vida pelas mãos de Mel Gibson, depois de um longo hiato de dez anos na carreira de diretor, apoiado no roteiro escrito a quatro mãos por Robert Schenkkan e Andrew Knight.

O filme tem início no meio de um violento combate, cortado rapidamente por um curto flashback, para conhecermos suas relações familiares e como a religião passou a ter uma influência tão forte sobre ele desde a infância, para depois termos contato com Desmond já na idade adulta (aqui interpretado por Andrew Garfield). Neste primeiro ato, a trama se aprofunda no desenvolvimento do protagonista com uma grande riqueza de detalhes, desde a sua “epifania” em que descobre sua vocação, ao seu primeiro contato com Dorothy (Teresa Palmer), aquela que viria a ser sua esposa, até a conturbada relação com o pai, o veterano da Primeira Guerra, Tom Doss (Hugo Weaving).

Quando chegamos ao seu período de treinamento no exército há uma grande ênfase na resiliência de Desmond, tanto para superar a dureza dos treinamentos quanto para enfrentar as reações de todos a seu redor contra suas convicções ideológicas e religiosas. O roteiro é repleto de bons diálogos, em que todas as partes envolvidas (Desmond, seus superiores, sua família e sua esposa) tem bons argumentos para se oporem, evitando assim a saída fácil de fazer juízo de valor, a favor ou contra de tais convicções. Em contraponto a isso, o texto faz uso de diversos clichês do gênero, como o sargento desbocado que gosta de humilhar os soldados (aqui interpretado por um aparentemente desconfortável Vince Vaughn) ou as várias etnias e estereótipos misturadas no pavilhão dos soldados (em um batalhão que, curiosamente, não tem um único soldado negro).

Que Mel Gibson é um diretor talentoso, com obras interessantes e um grande clássico no currículo, é quase um senso comum. E ele traz para “Até O Último Homem” muito daquilo que o consagrou como realizador em “Coração Valente”. As caóticas sequências de batalha são de tirar o fôlego, num ritmo tão intenso que será capaz de prender até o mais frio espectador na poltrona durante as várias explosões, tiroteios, disparos de lança-chamas, granadas, bombardeios e muitos, muitos sacrifícios. O cineasta tem tal domínio daquilo que quer mostrar em tela que, mesmo quando não faz uso de sua típica (e muitas vezes exagerada) câmera lenta, somos capazes de compreender com detalhes tudo que se passa com tantos personagens. E a carnificina, inerente ao gênero, se encaixa como uma luva nos gostos cinematográficos de Gibson. Há momentos capazes de rivalizar com algumas das sequências mais impressionantes dos maiores exemplares do gênero, como “O Resgate do Soldado Ryan”, “Platoon” ou “Cartas de Iwo Jima”.

A direção de fotografia chama a atenção pelas composições quase monocromáticas das cenas, com uma paleta de cores que varia entre tons neutros e militares, como cinza, cáqui, verde escuro e bege. Os únicos momentos em que tais cores não são exploradas são aqueles com escuridão quase total ou quando as labaredas de fogo se multiplicam nos combates. Além disso, vale ressaltar outro grande mérito: o de fugir do já batido tom dessaturado que se tornou quase padrão em filmes de guerra desde “O Resgate do Soldado Ryan”.

Se tecnicamente, com uma montagem eficiente e elementos sonoros realistas e bem equalizados o filme é primoroso, fica um pouco desequilibrado ao falarmos das atuações. Além do já citado Vince Vaughn, não chega a ser surpresa que Sam Worthington entregue uma performance tão fraca. Teresa Palmer e Rachel Griffiths fazem o que podem com o pouco espaço em tela que recebem. Contudo, tais defeitos somem diante de Hugo Weaving e Andrew Garfield. Weaving tem uma performance tocante como o maltratado e alcoólatra veterano de guerra, que visivelmente se utilizou da bebida para tentar esquecer os horrores e traumas que vivenciou. O ator brilha em todos os momentos que surge, ofuscando todos a seu redor com tamanha riqueza de detalhes com que compõe cada momento de sua atuação.

Já Andrew Garfield ocupa seu papel de protagonista com louvor. Ele constrói um arco completo, desde o jovem adulto bondoso e apaixonado até o forte e íntegro soldado veterano de guerra, sempre imerso no sotaque caipira e olhar ingênuo. Os únicos momentos que tiram a ingenuidade desse olhar são a frustração por ser constantemente colocado na posição de escolher entre sua fé e sua vocação ou a plenitude que ele alcança a cada vida que consegue salvar.

Talvez o tema “Segunda Guerra” comece a cansar o público, porém, cada vez que somos presenteados com um filme tão bem realizado, é fácil compreender porque é um assunto tão explorado pelo cinema, especialmente em Hollywood.

Publicado pelo autor no site Cinema com Rapadura.

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