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  • Arthur Gadelha

Eu, Daniel Blake (2016), de Ken Loach


O Festival de Cannes 2016 foi imediatamente compreendido como uma edição muito questionada pela crítica. Além de tantos prêmios imprevisíveis, como o vaiado do Xavier Dolan “É Apenas o Fim do Mundo”, muita coisa importante foi deixada de lado, como o alemão “Toni Erdmann” e até o próprio “Aquarius” – ambos causadores de muita expectativa. Essa questão gerou um mal-estar diante a “legitimação” dos grandes ganhadores. “Eu, Daniel Blake”, vencedor da Palma de Ouro, no entanto, é uma das certezas da premiação por ser uma obra de atualidade muito enérgica.

Contando a trajetória de Daniel (Dave Johns), um homem que enfrenta a burocracia do Estado, o diretor britânico Ken Loach não esconde seu desejo de trazer um olhar parcial para essa relação historicamente incompatível. E surpreende ao fazer isso de modo brusco, entregando ao filme uma narrativa clássica de “enfrentamento”, denunciando o sistema por meio de um tédio intencional diante um antagonista intocável.

No meio desse discurso lógico, a trama encontra uma vertente que começa com um gancho instigante: Daniel conhece outra refém de um Estado também vítima. Não só põe dois personagens aparentemente desiguais em busca de estabilização com problemas “imateriais”, mas faz questão de equipará-los gradualmente em condição de confronto.

Raramente se usando de um humor explícito, a trama se desafia a explorar Daniel também por fora do principal conflito, justificando sua humanidade acima de tudo – criando uma consistência que falta ao seu tratamento como cidadão. Tudo isso com uma direção quieta que não ousa interferir, só observar. Em certos momentos, o drama assume um caráter episódico (como a cena da Lan House ou a da reaproximação final); embora benéfica, configura-se como uma abordagem que não se arrisca para além do que incita.

O brilhante sarcasmo final tem um poder imenso. É uma pena que sua conclusão insista em escancará-lo como um fato puramente didático; a principal crítica contra o Estado se torna muito inteligente desde a primeira sequência para que se redobre em sentimentalismo segundos antes dos créditos. E, pela primeira vez durante seus justos 100 minutos, o registro cru e até então sincero se torna ensosso perante um debate tão pertinente.

Ainda assim, "Eu, Daniel Blake" é muito atual ao apontar os desgastes de um sistema que é desumano apesar de toda aparente modernidade. Ao aproximar essa discussão a uma questão de sobrevivência, a crítica não se constrói com apelo utópico. Ken Loach atêm-se ao que considera real e escancara os déficits dessa incomunicabilidade. E principalmente por não encontrar uma saída, disseminar essa crueldade pode vir a ser um estalo ao pensamento social de que “está tudo bem”.

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