A relevância social do For Rainbow é inegável. Após 10 edições, o festival cearense continua com o compromisso de agregar histórias audiovisuais que girem em torno das temáticas de identidade e gênero. O recorte da curadoria permite leves quebras de experimentação, tendo um interesse maior em filmes que possam dialogar mais facilmente com o público.
A extensa competição de curtas-metragens, que apresentou 14 obras nacionais e 14 internacionais, teve dificuldade em programar exibições que dialogassem mais entre si. Assim, algumas obras pareciam deslocadas de um contexto macro, acentuando suas qualidades e/ou defeitos nas sessões.
Duas animações internacionais se destacaram: a russa em stop motion "A Galinha Ryaba", de Vasily Kiselev, e a inglesa em desenho tradicional "Bebê X", de Brendan Bradley. As duas misturam humor e política para dialogar sobre a descoberta de desejos a partir de um olhar político sobre as questões de gênero.
Humor foi o que não faltou na competição de curtas. Os brasileiros "Diva", de Clara Bastos, e "Vagabunda de Meia Tigela", de Otavio Chamorro, deram leveza à competição, ainda que suas concepções estéticas abram mão de um trabalho mais apuro. Sobre comédia e humor dialogando no mesmo quadro, o sueco "O Tiozão", de Dawid Ullgren, consegue discutir as relações contemporâneas a partir de um paralelo entre o homossexual jovem e o velho. A mesma linha segue o ótimo espanhol "Inexistentes", de Manuel Martinéz Gómez, com uma pegada almodovariana bem-vinda.
Bons dramas passaram pelo festival, como o francês "Eva", de Florent Médina, sobre um encontro inusitado entre um jovem e uma prostituta transexual; o holandês "Um Companheiro de Verdade", de Niels Bourgonje, que se utiliza de uma história simples para fazer um filme que "abraça" quem assiste, e o francês "Rupturas (ou André e Gabriel)", de Franciso Bianchi, sobre as consequências do tempo em um relacionamento amoroso que não se concretizou.
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Amor e gênero em transição*
Algumas obras são importantes pela abordagem que fazem, mesmo que às vezes a concepção artística seja padrão. É o caso do documentário "O Garoto Real" ("Real Boy", no original), de Shaleece Haas, que abriu a Mostra Competitiva do 10º For Rainbow - Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual. O longa-metragem dá espaço para a discussão da identidade de gênero, mais especialmente aos transgêneros masculinos, a partir da história de Rachel que, aos 19 anos, se encontrou como Ben em um corpo feminino que não o pertence.
A partir de imagens de arquivo de Ben, nas quais ele mostra desde cedo o amor pela música e pela família, a diretora introduz o público a um universo que é preciso ser discutido em busca não só de entendimento, mas também de respeito.
Assim, "O Garoto Real" mostra a transição pela qual Ben passa, enquanto sua mãe tenta compreender e aceitar o novo caminho de Rachel. As duas histórias se comunicam por encontrar, cada uma da sua maneira, apoio e debate dentro da comunidade LGBT que transforma a compreensão e a representação dessas pessoas reais.
Por outro lado, a diretora Shaleece Haas opta por levar ao documentário suas influências televisivas, que interrompem a naturalidade de algumas situações e diálogos para adotar uma característica quase ficcional. A mãe de Ben é a mais prejudicada, já que em diversos momentos é questionável que ela esteja realmente dando um depoimento, e não atuando para as câmeras.
Apesar dessa naturalidade comprometida em alguns momentos da narrativa, "O Garoto Real" não deixa de ser orgânico e tem momentos inspiradores, seja na forma sutil de mostrar o entendimento de Ben com o próprio corpo, suas tatuagens, sua relação com os amigos Dylan e Joe, que também são transgêneros, e especialmente na sequência musical que mostra o amor entre mãe e filho.
Com uma montagem fluida, o filme possibilita a imersão naqueles diálogos, tendo como ápice a re¡exão poderosa de que o mundo exterior já é opressor demais para que o amor familiar seja opressor.
A diretora realiza um filme que também lança um olhar sobre a identidade dos jovens de hoje, que passam por conflitos comuns independente de questões relativas a gênero.
"O Garoto Real" não deixa de mostrar as dificuldades de encaixe dos transgêneros na sociedade, mas sem se entregar ao negativismo com que algumas histórias LGBT costumavam ser retratadas tempos atrás. Optar pela tragédia da construção de uma personagem real nem sempre é a melhor forma de quebrar preconceitos em um mundo onde a desinformação e a intolerância ainda existem.
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Três pode ser um número mágico*
Os baianos Cláudio Marques e Marília Hughes têm interesse de discutir a juventude, seja no premiado "Depois da Chuva" (2013) ou neste "A Cidade do Futuro" (2016), drama inédito que percorre festivais e venceu os prêmios de melhor filme e direção na opinião do júri oficial do 10º For Rainbow.
Ao abordar a relação amorosa de um trio de jovens, formado por dois homens e uma mulher, o longa-metragem propõe uma discussão sobre amores livres dentro de um cenário curioso, uma pequena comunidade no interior da Bahia.
Ainda que a proposta seja interessante, falta um pouco de empatia no que é visto em tela, até porque a relação moderna não transgride e aparenta ser tão conservadora quanto o contexto em que está inserida.
A legitimidade da relação é questionada pelos familiares e por desconhecidos do trio a partir de clichês do roteiro que dificultam a torcida a favor de um final feliz. Vale apontar que a relação a três funciona principalmente quando os casais estão divididos. É quando os atores estão mais confortáveis e a trama flui naturalmente. Juntos, parecem temer demais, oferecendo de menos para o filme.
Marques e Hughes se prendem aos estereótipos, o que prejudica o pensamento da juventude atual, que tentam se libertar não apenas dos padrões do corpo como também de suas emoções, se permitindo viver situações como a do filme.
Ainda, os diretores inserem um contexto político de deslocamento da comunidade como uma proposta de reflexão política, mas em nada interfere na construção narrativa. Também é um ponto interessante visto isoladamente já que, dentro dos conflitos do trio, esse contexto com pitadas documentais se comporta como um extraterrestre, sem dar unidade dramática.
As interpretações naturalistas de Mila Suzarte, Gilmar Araújo e Igor Santos trazem algumas dificuldades no primeiro ato do filme, mas depois é fácil acompanhá-los, mesmo que o roteiro aproveite pouco a inexperiência deles para tentar transformá-los em verdadeiras forças motoras da obra.
"A Cidade do Futuro" é um projeto que dialoga com as possibilidades de um mundo onde os padrões e as tradições familiares passam por mudanças, mas que não desprende totalmente suas asas para a provocação de uma trama mais corajosa. Pelo excesso de cautela, o filme fica muito quadrado e deixa de tatear o que está ao seu redor, se abstendo das alegorias e o que está fora do quadro.
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O índio é pop**
É recorrente o crítico de cinema ter certa má fama não apenas entre o público que discorda dele, mas às vezes isso se estende aos realizadores cujos filmes são analisados. O fato é que o crítico não trabalha, ou não deveria trabalhar, com a ideia de ser o portador de uma verdade universal. Ao escrever um texto, ele também está suscetível a cometer erros, assim como os filmes que são analisados. Ao mesmo tempo, muitos fatores podem interferir na experiência de ver cinema, principalmente em uma programação extensa como a do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
Apesar dos desafetos, o crítico de cinema tem uma oportunidade privilegiada de conhecer trabalhos diferenciados e desenvolver uma cronologia de entendimento daquilo que interessa para o audiovisual brasileiro. Também pode sublinhar deslizes que todos cometem, inclusive ele mesmo. Claro que os bons textos precisam aderir a um tom ético que não beire o puxa-saquismo, mas para preservar a memória do que se faz de bom no cinema, é preciso se posicionar com propriedade, sem descambar em polêmica boba ou no deboche barato, com o mínimo de respeito até pelo pior dos filmes, mesmo que às vezes seja uma tarefa dura.
Aprendemos isso tudo na prática e com o tempo ou, mais uma vez, deveríamos aprender a cada lme visto e em cada festival visitado. Saber de posicionar é importante e está em alta, ainda mais num período em que política e estética caminham cada vez mais indissociáveis e artistas gritam para defender suas ideologias e mostrar sua visão de mundo, enquanto os críticos tentam decifrar seus mecanismos criativos para elaborar essa interpretação entre obra e público.
Amazonas
Dito isso, a exibição na competição do Festival de Brasília do longa-metragem amazonense "Antes o Tempo Não Acabava", dirigido por Sérgio Andrade e Fábio Baldo, veio como um furacão, gerando debate caloroso e controverso sobre o respeito e a valorização da cultura indígena ambientada em um espaço urbano.
Além de projetar o cinema ainda discreto, mas que quer sair da caixa, do Amazonas no mais importante festival do País, o filme se preocupa em fazer uma abordagem macro do comportamento de uma sociedade que tem dificuldade de desapegar da tradições ou refutá-las.
A trama acompanha o índio Anderson, rapaz introspectivo que vê aflorar o desejo da sexualidade. Em paralelo, sua tribo enfrenta uma vindoura e "inevitável" morte, vista como necessária dentro dos preceitos indígenas sobre a existência e a perpetuação de seus membros. O conflito que corre por fora faz com que Anderson questione seu lugar no mundo e busque olhar para o que ele verdadeiramente representa não apenas para a tribo, mas para ele mesmo.
Autocartografia
O roteiro é corajoso ao questionar educadamente as tradições que, como dito no filme, olham para o passado e esquecem de viver o presente. Aqui, vale ressaltar que a vida do índio é um cenário, já que o filme universaliza essa problemática, sendo possível encaixá-lo em diversos segmentos sociais, culturais e, principalmente, religiosos. A busca pela correção do que é incurável e a subjetividade que todos carregam nos remetem à rejeição ou inadequação que as minorias ainda enfrentam. Assim, a história de Anderson se transforma numa grande alegoria social que reflete sobre tolerância e sobre se encontrar.
Diferente de "Martírio", que também está em competição no Festival de Brasília e traz uma importantíssima investigação documental sobre a luta histórica pelo respeito e pela conquista geográfica dos povos indígenas, "Antes o Tempo Não Acabava" dedica-se a cartografar o indivíduo social, um espelho de todos nós que temos nossas próprias batalhas para lutar, independente de raça, gênero ou qualquer outro fator.
Críticas
Há quem exija fidelidade antropológica fanática da história, ainda mais sendo produzido no próprio Amazonas, mas isso reforça o quanto a sociedade precisa olhar para filmes como esse, que trazem contrapontos provocadores para desconstruir ideias herméticas de um mundo em transformação.
O convívio e a pesquisa do tema são partes fundamentais para conhecer quais ângulos podem ser explorados em uma obra ficcional e como ela pode reverberar no público.
Para contar tudo isso, os diretores se mostram precisos em termos de linguagem, fazendo um filme visualmente eficaz e simbólico, desde seu prólogo de caráter documental ao desenvolvimento dos conflitos do protagonista. O ator Anderson Tikuna é outra grata surpresa, encarnando seu homônimo como um veterano que explora suas referências históricas para entregar um personagem que, mesmo ainda em processo de conhecimento do mundo, é forte.
Ao optar por mostrar o descobrimento da sexualidade de Anderson, o roteiro controla os possíveis clichês que esse recorte poderia render. O filme possibilita que ele se descubra também no tempo, indo além daquilo que está claro na sua frente, reconhecendo também que para tudo há um dano, que cabe a nós enfrentá-lo para evoluir.
A maturidade criativa dos diretores rende composições de cenas efetivas, que tornam o filme especial - embora pequenas gorduras do roteiro sejam percebidas, mas ordinárias em relação à abordagem geral. "Antes o Tempo Não Acabava" traz um frescor necessário para a produção nacional, com um foco que reforça uma questão mais humana e, principalmente, que toma como imperativo mostrar o tesão que ainda é fazer cinema no Brasil, mesmo em tempos difíceis.
*Textos publicados pelo autor no Jornal Diário do Nordeste.
**Texto publicado pelo autor no Jornal Diário do Nordeste, durante a cobertura do 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro de 2016.
Diego Benevides integrou o júri Aceccine do 10º For Rainbow - Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual, em novembro de 2016.