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  • Thiago Sampaio

Snowden – Herói ou Traidor (2016), de Oliver Stone


Não é coincidência o fato de “Snowden – Herói ou Traidor” ter estreado no ano das eleições presidenciais dos Estados Unidos. Principalmente nesse episódio tão peculiar em que a eleição de um bilionário do partido republicano sem experiência política como Donald Trump foi o assunto mais comentado em qualquer lugar. Todos os países estão de olho na maior maior potência capitalista do mundo. Mas na verdade, quem observa quem? A cinebiografia do ex-funcionário da CIA e da Agência de Segurança Nacional que revelou para a mídia o grande esquema de vigilância global é o retorno em grande estilo do diretor Oliver Stone às tramas políticas, entregando um retrato das artimanhas invasivas que contribuem para os EUA permanecer no topo da pirâmide.

Como é de se esperar, a história narra a façanha do ex-analista de sistemas da CIA Edward Snowden (Joseph Gordon-Levitt). Em 2013, ele divulgou informações confidenciais e de espionagem da NSA, a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos. O material exposto revelou que o país coleta informações da internet e registros telefônicos da população e também de políticos de todo o mundo.

Oliver Stone é conhecido pela veia crítica/satírica ao mundo político, econômico e midiático, como “Wall Street: Poder e Cobiça” (1988), “Assassinos por Natureza” (1994), presente inclusive em obras biográficas como o bom “JFK – A Pergunta que Não Quer Calar” (1991) e os medianos “Nixon” (1995) e “W.” (2008). Após passear por produções mal recebidas pela crítica, como “Alexandre” (2004), a continuação de “Wall Street” (2010) e “Selvagens” (2012), ele volta ao estilo que o consagrou. Em “Snowden – Herói ou Traidor”, o cineasta utiliza da entrevista concedida pelo personagem-título como base para narrar os fatos revelados por ele aos jornalistas, destilando a sua criatividade artística para causar no espectador o impacto que o sistema provoca no ser humano.

A entrevista em questão, concedida aos jornalistas do The Guardian, Glenn Greenwald (Zachary Quinto) e Ewen MacAskill (Tom Wilkinson), e à documentarista Laura Poitras (Melissa Leo), a mesma que originou o ótimo documentário “Cidadãoquatro” (2014), dirigido por Poitras, serve bem de esqueleto para os flashbacks que apresentam Snowden, um típico nerd introspectivo e gênio, sua breve passagem pelo exército americano, como ele conhece sua paixão Lindsay Mills (Shailene Woodley) através de um chat na internet, até culminar nas suas descobertas na CIA e na NSA. Os acontecimentos estão lá, mas o diretor não esconde que se trata de uma livre adaptação cujo intuito é apontar o dedo. É conhecida a repugnância de Stone ao governo de George W.Bush, mas ele deixa claro que a máquina é bem maior do que um líder, a ponto de o protagonista revelar a sua decepção por acreditar que o cenário seria diferente com Barack Obama.

Muitos podem pensar que não é novidade para ninguém que os Estados Unidos têm influência sobre outros países e todos somos observados. De fato. Mas o filme vai além, nos faz questionar até que ponto o homem vende a própria liberdade em nome de uma sensação de “segurança”. Por mais que saibamos que a tecnologia nos torna refém dela a ponto de perdermos a nossa identidade, a privacidade se tornou algo cada vez mais raro. Cada câmera de computador ou celular (mesmo desligadas), E-mail, redes sociais, telefonemas, se tornaram ferramentas não só mercantis, mas governamentais. E a produção conta com uma edição dinâmica, alternando imagens reais e fictícias, incluindo declarações indignadas de líderes como Vladimir Putin e protestos de populares alegando viverem num “Big Brother”. O Brasil não fica de fora do jogo, incluindo citações a Petrobras e a presidenta deposta Dilma Rousseff. Afinal, a Operação Lava Jato e o processo de impeachment têm sido ou foram tocados da maneira mais transparente possível (sim, foi ironia!).

O diretor de 70 anos mostra criatividade ao construir a paranoia que acomete o protagonista, a ponto de colocar telefones dentro do microondas, se esconder debaixo do cobertor para digitar senhas e até precisar se comunicar através da linguagem de sinais. Em determinadas sequências, ele prima por analogias estilosas, como ao comparar a webcam de um notebook ao globo ocular de uma pessoa e, principalmente, quando o fictício mentor da CIA Corbin O’Brian (vivido por Rhys Ifans) aparece onipresente em uma tela gigante, enquanto Snowden fica diminuído, intimidado. Quando o protagonista foge com as informações confidenciais, existe todo aquele clímax, criando até uma tensão que funciona, algo semelhante ao que Ben Affleck fez com seu premiado “Argo” (2012).

Bom lembrar que se trata de cinema e, como qualquer mídia, o produto se restringe à visão do seu autor. O subtítulo brasileiro “Herói ou Traidor” se mostra ainda mais desnecessário ao fim da projeção, pois o longa tende de maneira clara pela primeira opção. Dependendo do ponto de vista, ele é as duas coisas. O roteiro de Stone, ao lado de Kieran Fitzgerald ("Dívida de Honra", 2014), se baseou nos livros “Time of the Octupus”, de Anatoly Kucherena, e “The Snowden Files: The Inside Story of the World’s Most Wanted Man”, do repórter Luke Harding, além de diversas idas do diretor a Moscou para conversas com o verdadeiro Edward Snowden. O que ali em cena aconteceu de fato? E a visão dos governantes em meio às investigações? Provavelmente nem o próprio cineasta sabe e essa não é a proposta do longa-metragem.

Joseph Gordon-Levitt entrega mais uma atuação na medida, fazendo de Edward Snowden um nerd sem muita aptidão para lidar com outras pessoas, mas fugindo do estereótipo, visto que nas mãos de outro ator o papel poderia se transformar em um personagem do seriado “The Big Bang Theory”. Shailene Woodley está convincente como a fotógrafa Lindsay, cuja personalidade é o extremo oposto do protagonista, espontânea, meio alternativa, mas compreensiva quanto ao trabalho do parceiro, de modo que eles se complementam. O grande elenco de coadjuvantes traz força à produção, com atuações seguras de Zachary Quinto, Melissa Leo, Rhys Ifans, Tom Wilkinson, Timothy Olyphant, Joely Richardson e, quem diria, Nicolas Cage em uma participação rápida, porém, “sóbria”.

Questionamentos sobre o verdadeiro Edward Snowden à parte, é bom ver o velho Oliver Stone contundente de volta, atingindo o objetivo de garantir um entretenimento de muita qualidade e ainda trazer reflexões. A sensação que fica é que o futuro previsto por Aldous Huxley em 1932 na obra “Admirável Mundo Novo” ou George Orwell em 1949 em “1984” já é uma realidade bem mais antiga do que imaginávamos.

Publicado pelo autor no Blog Cena Cultural / Tribuna do Ceará.

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