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  • Pedro Azevedo

IX Janela Internacional de Cinema do Recife: Um convite à desobediência civil


Muitas coisas maravilhosas já me aconteceram a partir ou através do Janela desde quando comecei a frequentar o festival em 2012. Guardo com carinho, por exemplo, a primeira vez que testemunhei os vitrais do Cinema São Luiz acenderem nas laterais da tela antes de uma sessão de "Psicose". O catálogo que trago aberto aqui do lado acusa que essa exibição ocorreu num sábado às dez da noite, e lembro de ter ficado espantado com a fila que dava voltas no quarteirão do SL. Naquele que era o meu primeiro ano fazendo “turnê” como repórter e crítico por diversos festivais de cinema no Brasil, a imagem do centro da cidade do Recife ocupado por centenas de pessoas foi a que mais marcou.

De lá pra cá foram algumas dezenas de filmes assistidos nas edições em que pude estar presente (exceto a de 2015), e comprovar o crescimento do Janela no seu escopo de programação (que é ampliada e radicalizada ano a ano) e adesão junto ao público (tenho a impressão de que o São Luiz está cada vez mais cheio) renova as minhas esperanças de que a formação de plateia via cinema é um processo não apenas possível e viável como bonito.

Em 2013, ano que ficou marcado pelas famosas marchas de junho, a programação de clássicos do festival reuniu títulos de várias décadas que aludiam, cada um à sua forma, ao tema central da Manifestação. O sentimento de urgência por mudança política no Brasil ressignificava a apreensão desse bolo de filmes que, quando vistos em conjunto, remetiam a um certo estado das coisas no nosso país.

Edição após edição, o Janela vem trabalhando os clássicos por meio de palavras-chave que revelam ideias de curadoria inseparáveis do tempo presente. Em 2014 foram Estradas perdidas, 2015 Filmes de rua, desembocando na Desobediência em 2016.

Não parece mera coincidência que filmes de rebeldia e insubordinação civil tenham tomado de assalto boa parte da programação do festival para além dos clássicos, pois diante da atual conjuntura sócio política do Brasil e do mundo, a desobediência tem se revelado uma arma potente de resistência contra os sistemas usurpadores. Basta observar as greves e ocupações estudantis que estão acontecendo em todo o País – e que são negligenciadas ou criminalizadas pela grande mídia – para entender o poder de síntese da palavra.

O tom do 9º Janela ficou muito claro desde a sua primeira sessão, quando numa parceria com a Abraccine foi exibido "Eles Não Usam Black Tie", de Leon Hirszman. Leon, que foi uma das figuras centrais do Cinema Novo (cujo movimento foi homenageado recentemente no documentário de Eryk Rocha, "Cinema Novo", também exibido no festival), captura os bastidores de uma greve operária em São Paulo no início dos anos 80. As múltiplas cenas de repressão policial daquele Brasil ainda tomado pela ditadura militar não são muito diferentes das que observamos hoje nas manifestações populares que se espalham por todo o solo nacional. A sentença final do filme, entoada em uníssono por uma multidão que permanece em marcha, ecoa como um mantra para os dias de hoje: “A greve continua”.

Ainda na abertura, também foi exibido o primeiro longa de ficção do pernambucano Tião, "Animal Político", que seguiu enveredando pelo caminho da incerteza e da auto afirmação/descoberta através do rompimento com os dispositivos aprisionadores da sociedade; encerrando com o vencedor da Palma de Ouro em Cannes, "Eu Daniel Blake", de Ken Loach, onde um aposentado trava uma árdua batalha burocrática contra o estado do Reino Unido para reivindicar seu direito social de seguro desemprego.

Essa tríade por si só já deixava um rastro de pistas para o que viria a seguir, principalmente no pacote de clássicos que, com mais ou menos compromisso com o termo desobediência em sua apreensão literal, apontavam para múltiplas possibilidades de insurreição; fosse na recusa em participar da guerra do Vietnã e na transgressão pelo uso de drogas e libertação da mente em "Hair", no plano diabólico do empregado que escraviza o patrão em "O Criado" ou na insistente permanência de dois assaltantes no banco onde ensaiaram um roubo mal sucedido em "Um Dia de Cão".

A seleção ainda guardava algumas descobertas valiosas como a cópia de "1 Berlin-Harlem" em 35mm cedida pela cinemateca alemã, registro poderoso sobre intolerância e racismo na Alemanha dos anos 70, quando o país ainda estava separado pelo muro de Berlim; mas a grande exibição do festival no que tange aos clássicos foi mesmo a de "Eles Vivem". Que o filme por si só representa um amálgama de todos os virtuosismos que John Carpenter acumulara em sua carreira de cineasta até então, após dirigir várias obras-primas em sequência nas décadas de 70 e 80, é apenas um dado objetivo. Outrossim, poder assistir a essas imagens hoje, no cerne de insalubridade do mundo em que habitamos, com um governo ilegítimo em curso no Brasil e com Donald Trump em vias de ser eleito (no momento em que escrevo esse texto Donald Trump é o novo presidente eleito dos Estados Unidos), é especialmente forte.

Outro filme que opera sob a chave da desobediência foi exibido na competição de longas-metragens, onde acabou se sagrando vencedor do prêmio de melhor filme. "Martírio" é uma das experiências mais fortes e importantes do cinema nacional nos últimos anos. O documentário de Vincent Carelli é um épico de quase três horas que remonta a origem das lutas dos Guarani Kaiowá por suas terras saqueadas desde os tempos do império. O massacre que vem sendo imputado de forma genocida aos povos indígenas é pouquíssimo registrado tanto na cinematografia quanto nos meios de comunicação do Brasil, então é nesse espaço de constatação urgente de uma história pouco ou quase não contada que o filme se circunscreve e se faz necessário.

Ainda sobre a competição, dois filmes dignos de nota que descortinam diferentes formas de estar no mundo através das relações entre corpo e cidade são os ótimos "A Cidade Onde Envelheço", de Marilia Rocha, e "Diamond Island", de Davy Chou; um em Belo Horizonte e outro no Camboja. Recheados de doçura e aspereza, combinação difícil de ser obtida com sucesso, os longas revelam embates de estrangeiros com novas paisagens e costumes.

Por fim, o feminismo e suas reverberações práticas no campo da militância e do cinema também foram temas de debate no 9º Janela, afinal, diante das investidas mais e mais violentas dos machos em relação às mulheres, o revide contra o patriarcado é um ato de desobediência pura e essencial. No bloco de exibições especiais, o documentário "Câmara de Espelhos" (dirigido por Dea Ferraz) proporcionou uma experiência digna de filme de terror, colocando os homens face a face com o seu pior reflexo e escancarando a natureza dos discursos machistas reproduzidos com frequência no dia-a-dia, desde os mais “brandos” e “sutis” (mas tão nocivos quanto) até os mais grotescos.

Também exibido fora de competição, "Elle" (novo filme de Paul Verhoeven) gerou discussões acaloradas sobre violência e estupro, mas talvez a experiência mais catártica de todo o festival tenha acontecido na sessão de "Sedução e Vingança", de Abel Ferrara, onde o revide feminino vai para as vias de fato e a derrocada masculina se dá através de dezenas de assassinatos de homens cometidos por uma mulher. Que momento!

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