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  • Thiago Sampaio

O Contador (2016), de Gavin O'Connor


O que Michael Phelps e Lionel Messi têm em comum? Claro, eles são os atletas mais geniais em seus respectivos esportes. Mas além disso, o primeiro é portador do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e o segundo foi diagnosticado aos oito anos com Síndrome de Asperger, que também acometia outros gênios como os físicos Isaac Newton e Albert Einstein, o naturalista Charles Darwin, o pintor renascentista Michelangelo, entre outros. Essa peculiaridade dessas pessoas “especiais” de canalizar a atenção para o principal talento, tornado-os únicos, é o que torna “O Contador” diferente dos filmes de ação padrões, mesmo que falhe em vários aspectos.

Na trama, desde criança, Christian Wolff (Ben Affleck) sofre com ruídos altos e problemas de sensibilidade, devido à Síndrome de Asperger. Ao crescer, Christian se torna um contador extremamente dedicado, graças à facilidade que tem com números. A partir de um escritório de contabilidade, instalado em uma pequena cidade, ele passa a trabalhar para algumas das mais perigosas organizações criminosas do mundo. Ao ser contratado para vistoriar os livros contábeis da Living Robotics, ele descobre uma grande fraude, o que coloca em risco sua vida e da colega de trabalho Dana Cummings (Anna Kendrick).

O gênero ação é, ao lado do terror, talvez o que mais lança produções genéricas apoiadas em personagens superficiais e efeitos especiais. “O Contador”, por sua vez, tem ao seu favor o bom desenvolvimento do seu protagonista, de modo que um dos principais focos da trama é a sua dificuldade de interação social. Christian Wolff vive como um cidadão comum, trabalha, dirige o seu carro. Mas é extremamente metódico, toma o medicamento na hora exata, sabe lidar melhor com números do que com pessoas, expressa poucas emoções e ouve em rock nas alturas para trabalhar a própria dificuldade com ruídos. Por causa da Síndrome, a inteligência é apurada. E se Messi e Phelps tornaram-se gênios no esporte, Wolff se especializou em matar. Assim, o novo anti-herói soa como uma estranha mistura entre Jason Bourne e Raymond Babbitt, personagem de Dustin Hoffman em “Rain Man” (1988), por mais absurda que seja essa premissa.

O diretor Gavin O’Connor (do regular “Força Policial”, 2008; e do bom “Guerreiro”, 2011) acerta ao apresentar o protagonista gradativamente, de modo que só nos deparamos com a primeira cena de briga quase na metade dos 128 minutos de projeção. Logo no início, conhecemos Christian Wolff criança, no momento em que os pais descobrem que ele é especial – e o espectador confere que ele tem dificuldade em começar algo e não terminar. Na condução das cenas de ação, o cineasta também se mostra eficiente por ser contido, sem apelar para momentos grandiosos e cortes rápidos. A diversão está justamente na frieza com que o contador estrangula um bandido aleatório com o próprio cinto, explode a cabeça de alguém e a facilidade com que ele acerta um tiro a quilômetros de distância.

Mas mesmo com grande potencial, a produção derrapa no roteiro do estreante Bill Dubuque, principalmente na péssima construção dos personagens coadjuvantes. A inspetora do Tesouro Nacional vivida por Cynthia Addai-Robinson, por exemplo, poderia perfeitamente ser excluída sem nenhum prejuízo para a trama e, para piorar, ainda tentam trazer alguma dramaticidade a sua “história”, que em nada acrescenta. Jon Bernthal deve ter mais espaço em uma possível continuação, mas, por enquanto, se limita a um papel de um matador de aluguel como qualquer outro. O ótimo J.K. Simmons mostra importância apenas nos minutos finais quando ele precisa explicar de maneira mastigada para o espectador a sua relação com o protagonista, numa reviravolta bem difícil de engolir. Por sinal, o script tenta causar surpresas no desenrolar da trama, mas, na verdade, é bem previsível.

Se Ben Affleck faz um bom trabalho justamente por se manter inexpressivo em meio a situações desesperadoras por causa da Síndrome (o sorriso de canto de rosto na cena final é o seu maior esforço), a carismática Anna Kendrick está lá apenas para representar a menina bonitinha que o “herói” precisa proteger. A relação entre eles poderia ser um dos principais motes da trama, mas os péssimos diálogos não contribuem para isso – a cena em que ela conta sobre o drama para comprar um vestido na adolescência e assim ser aceita pela sociedade é pra lá de piegas.

A produção também é prejudicada pela montagem, que insiste na inserção de flashbacks que quebram o ritmo. Tanto que o primeiro deles a mostrar que Christian Wolff treinava luta desde criança surge logo antes da primeira cena de ação, como se só isso explicasse a máquina de matar que ele é, blindando de questionamentos. Por sinal, chega a ser hipócrita o modo como é apresentado o tratamento dado pelo pai dele (vivido por Robert C. Treveiler), demonstrando amor por prepará-lo desde cedo para não sofrer no futuro por ser diferente. O que se vê, na verdade, é uma criação doentia, num treinamento militar a crianças com agressões físicas e psicológicas (inclusive atormentado o filho com som alto, algo que o jovem com Síndrome de Asperger é suscetível), e estimulando a prática de briga com outras crianças.

No fim das contas, “O Contador” não esconde o seu intuito comercial na tentativa de instaurar uma franquia para Ben Affleck, algo que o seu amigo Matt Damon já o fez lá em 2002 com “A Identidade Bourne”. Uma continuação é bem provável, já que este deixa várias pontas soltas, como a misteriosa voz da secretária de Wolff. Como o cinema se trata de um universo de sonhos, é interessante a ideia de fazer os jovens especiais acreditarem que podem, sim, serem heróis e ajudar os seus semelhantes, por mais estranhos que sejam os métodos adotados.

Publicado pelo autor no Blog Cena Cultural / Tribuna do Ceará.

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