Passeando por uma livraria, a capa de “O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares” me chamou atenção. Na contracapa, há um comentário de Tim Burton: “Parece algo que eu teria feito”. E essa impressão é instantânea. O livro traz fotos macabras e um enredo fantástico, embora juvenil, igualmente inquietante. O que me lembrou imediatamente a combinação de tramas de formatos simples com um viés macabro, presente principalmente em “Edward Mãos de Tesoura”, “A Noiva Cadáver” e “Estranho Mundo de Jack”. Não é surpresa perceber que esses mesmos títulos pareçam construir o clima de “O Lar das Crianças Peculiares”, porque, embora não seja um grande filme do gênero, a fantasia que tenta ser inovadora ganha uma personalidade mais densa com a presença de Burton e sua afinidade por tudo que já existe na história de Ransom Riggs.
O roteiro de Jane Goldman (uma das cabeças de dois dos "X-Men") tem a capacidade visível de mesclar objetivos de tramas e personagens, o que acaba por transformar a maneira como compreende os próprios espaços. Jake, por exemplo, tem um nó bem definido: vive em uma realidade, conhece outra, não sabe a qual pertence. E ao mesmo tempo que põe em evidência uma invasão psicológica sobre essa decisão, nada fica tão escancarado como uma possível polarização dos núcleos. As duas realidades convertem-se para a que importa: estamos seguindo Jake. Isso significa que algumas situações óbvias têm importâncias deixadas de lado, como o processo de acreditar rapidamente que está em 1943. Por outro lado, essa clareza simplifica demais seus pontos de virada, tornando as soluções unicamente funcionais – um gancho no meio do filme surge para solucionar o grande problema do clímax, e por aí vai.
O imaginário de Burton funciona também com muita música nos momentos em que assume e abraça a fantasia. A trilha, com a saída de Danny Elfman (parceiro de longa data) desse crédito, apresenta um baque perceptível ao se adaptar às situações de maneira genérica. O que, necessariamente, não danifica o calor de suas aventuras, mas reduz o impacto. A fotografia de Bruno Delbonnel não faz questão de repetir as dualidades visuais que há na filmografia de Burton e resolve construir algo uno e sincero; a iluminação sempre muito azulada e a neblina fraca cria um clima crível, principalmente ao se encaixar com a unidade dos ambientes independente da época em que estão.
A adaptação literária torna-se muito evidente na corrida do roteiro para abarcar o maior número de acontecimentos e tentar entregá-los o mesmo grau de impacto. É inteligente por parte da abordagem que muitas informações sejam omitidas e até mesmo excluídas com muita propriedade - situação que danifica muitas adaptações, aqui torna-se um processo justo. Quando lhe convém amarrar nós não previstos, porém, há uma bagunça inesperada. No entanto, quando o próprio Tim Burton aparece no caos da cena em um corte muito rápido, volta à mente o quanto tudo aquilo diverte o próprio diretor e principalmente a plateia. Só ele teria a confiança para engrossar uma trama com apelo macabro e, ainda assim, achar espaço para pôr caveiras batalhando com monstros invisíveis em um parque de diversões ao som de música eletrônica. “O Lar das Crianças Peculiares” é, em poucas palavras, um filme simplesmente divertido. Mas temos provas e convicções que Tim Burton um dia foi muito mais que isso.
Publicado pelo autor no Quarto Ato.