top of page
  • Arthur Gadelha

Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho


Em sua primeira imagem divulgada, a pose calma e o olhar aflito de Sonia Braga pressionada num corredor de caixas e perdida num emaranhado de papéis me seduziu. Por meses, especulei o que seria o novo filme de Kleber Mendonça Filho. De repente, vi "Aquarius" envolto de um turbilhão externo; selecionado para Cannes, ovacionado por plateias ao redor do mundo e o estopim de uma polêmica política. "Aquarius" tornou-se, inesperadamente, o centro de atenções divergentes. A pergunta que se formou logo depois é óbvia: ele merece todo o alarde?

Por conta dos meses de “preparação”, entrei na sala acreditando saber de muita coisa. Estava ali para acompanhar a história de uma mulher que não queria vender o apartamento para a construção de um novo edifício. "Aquarius", no entanto, não é um filme de poucos objetivos. O apartamento de Clara não é somente capaz de arquivar memórias, mas também de dar vida e forma a novas. Esse é o ponto crucial do filme que torna seu discurso engenhoso. Seu constante vínculo com o peso do passado não indica qualquer relação com um conservadorismo em seu sentido mais pejorativo.

A determinação de Clara contra a destruição do edifício se torna um dos motivadores para o que há de mais consistente na trama: o ícone da imponência feminina, da bravura e da imposição da própria liberdade. Para isso, Kleber evoca a união de figuras que não costumam ser vinculadas; a imagem idosa de uma mulher viúva une-se corajosamente com a consciência de seus desejos íntimos. Agravante de sua independência sexual, a doença de Clara apropria a necessidade de declarar seu empoderamento ao contrastar com uma fragilidade que jamais é explorada como um artifício gritante. A emoção está láe para isso não é necessário mais que duas marteladas.

Assim como o apartamento, a cidade também conta história. Para registrá-la de maneira próxima, Kleber não esconde o domínio das ferramentas do seu cinema. Os zooms corajosos e os planos calculistas carregam ao longa um traço vivo de mobilidade; sempre suspensa, a câmera olha tudo de longe transformando a tela do cinema em uma imensa janela. De repente, estamos no nosso próprio Aquarius e, assim como Clara, não queremos sair dali.

Atrelando sua precisão técnica ao percurso narrativo, induz a todo instante possíveis tramas que nunca acontecem. Por vezes deixa explícito a confusão que incita, por outras deixa por decifrar. Suas tramas (e “subtramas”) nunca parecem arquitetadas, o que impõe ao resultado um grau de realismo impressionante. Partindo do dia a dia, todo detalhe, por menor que seja, é importante. A cidade está viva, não somente Clara e seu impasse acontecem por ali.

A trama se conclui de maneira tão sincera, que o impacto assusta. Durante quase 150 minutos, Clara passa por um processo minucioso de construção. Somente no último (e arrepiante) take podemos ter certeza que conhecemos Clara e suas principais motivações (e até mesmo contradições). A mensagem óbvia de resistência vai além. Ao mesmo tempo que há uma metáfora ao nosso contexto político, "Aquarius" também é inteligentemente íntimo. Do primeiro “não” de Clara à sua catarse final, o que o longa reforça é a necessidade não somente de valorizar nossas memórias, mas de defendê-las. Compreender, principalmente, que elas são responsáveis pelo que somos, pela maneira infinitamente pessoal que enxergamos nossa presença no próprio tempo.

bottom of page