Um filme projetado para o futuro e vindo do passado. Algo parecido como a descrição sobre o anoitecer em certo momento do filme pelo casal visitante da casa onde se passa a ação: é como se não estivéssemos nem vivos nem mortos. Assim é "Visita ou Memórias e Confissões", de Manoel de Oliveira, obra póstuma rodada em 1982, e que fala do próprio cineasta e da casa que ele é forçado a abandonar, por causa de problemas financeiros, depois de 40 anos lá vivendo. Por ordem do diretor, o filme só poderia ser lançado após sua morte. Então com 73 anos, Manoel de Oliveira talvez imaginasse que estaria no fim da vida, que faria bem poucos filmes. Ele já era um autor consagrado por filmes como "Amor em Perdição" (1979) e "Francisca" (1981), mas jamais imaginaria que chegaria à estatura de gigante, que sua fase mais rica e brilhante ainda estaria por vir, já que continuaria a fazer cinema até os 106 anos de idade. Já se percebe a poesia presente em sua obra desde as primeiras imagens, quando o casal cujos rostos nunca são mostrados, apenas as suas vozes, Teresa Madruga e Diogo Dória (ambos de "Francisca"), fala de detalhes como as árvores que rodeiam a casa, como aquela que possui uma magnólia ou a árvore com aspecto pouco simpático, que funciona como guardião daquele lugar. Os belos diálogos são da escritora Agustina Bessa-Luís, parceira de Manoel de Oliveira em filmes brilhantes como o já citado "Francisca", o maravilhoso "Vale Abraão" (1993) e o misterioso "Espelho Mágico" (2005), ainda que nos três casos ela tenha sido a autora das obras literárias que inspiraram as adaptações cinematográficas. O texto poético de Agustina entra em sintonia perfeitamente com as imagens captadas na câmera subjetiva e em movimento do diretor, que explora inicialmente o exterior da casa, mas que ganham ar de algo sobrenatural e fantasmagórico quando adentram o lugar vazio, mas apesar de tudo cheio dos móveis e de fotografias de pessoas que a narradora-visitante diz parecer conhecer de algum lugar. Em certo momento, um deles fala sobre a natureza falsa das fotografias, que sempre procuram captar os momentos felizes, quando deveriam capturar a imagem das pessoas após as tormentas por que elas passam na vida. Em paralelo, o registro mais próximo do documentário do filme ocorre quando vemos Manoel de Oliveira conversando conosco, nos apresentando sua casa, sua família, pequenos trechos de filmes, fala sobre projetos futuros, de sua experiência traumática na época da ditadura, de suas crenças e visões de mundo que parecem antiquados diante daqueles tempos mais modernos. "Visita ou Memórias e Confissões" é um filme muito simples. Mas ao mesmo tempo possui algo de muito especial no modo como lida com as memórias e a poesia das imagens e das palavras. Além do mais, o fato de ter sido apresentado somente após a morte do autor, depois de ele ter se tornado um cineasta de tão alta estirpe, dá ao filme um ar solene, o que é compreensível diante de tudo que Manoel de Oliveira nos deixou de obras a serem visitadas e revisitadas.
Publicado pelo autor no Diário de um Cinéfilo.