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Marcelo Ikeda

A Moça que Dançou com o Diabo (2016), de João Paulo Miranda Maria


A premiação de "A Moça que Dançou com o Diabo" no Festival de Cannes abriu mais espaço para o trabalho de João Paulo Miranda Maria. Seu curta anterior - "Command Action" - também havia sido exibido em Cannes no ano anterior, na Semana da Crítica. Mas na verdade é preciso apontar que esses dois curtas representam o desenvolvimento de um trabalho bastante anterior. João Paulo é fundador do Coletivo cinematográfico Kino Olho, em Rio Claro, e professor da Unimep em Piracicaba. O Kino-Olho é um coletivo criado em 2005, que envolve diversas atividades, como uma oficina permanente de cinema (que completou 10 anos), uma revista de cinema (a Revista Caipira, que, até abril de 2014, teve 62 números publicados) e um festival de cinema (o FIIK - que em 2015 teve sua 7a. edição).

Se o cinema paulista é, como todo o cinema brasileiro, muito concentrado na capital, João Paulo participa de um movimento de pensamento e criação cinematográfica a partir da cultura do interior paulista. Ainda, o Kino-Olho se diferencia dos movimentos de interiorização como, por exemplo, o de Paulínia, estruturado a partir de uma visão industrialista e essencialmente economicista do processo cinematográfico. Mesmo com um apoio muito pequeno (basicamente apoiadores locais), o Kino-Olho foi avançando para a realização, seja de pequenos documentários sobre temas e festas locais seja de obras ficcionais como exercícios de olhar visando ao amadurecimento do grupo. No Brasil, o trabalho de João Paulo nunca foi muito valorizado ou reconhecido. Mas tudo parece mudar com a seleção para o Festival de Cannes desses dois curtas realizados de forma cooperativa, sem editais públicos regionais ou nacionais. Com o "selo de qualidade" do principal festival de cinema do mundo, finalmente agora os olhos dos curadores brasileiros se voltam ao trabalho de João Paulo.

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"A Moça que Dançou com o Diabo" prossegue a pesquisa de "Command Action", mas com mais contenção e minimalismo. Me parece que o que une os dois curtas é um olhar para a falta de perspectivas dos "não adultos" no interior paulista. Em "Command Action", uma criança perambula por uma feira à procura do que fazer. Enquanto caminha (um longo plano sem cortes, pelas costas dos personagens) levando no colo seu irmão pequeno, deixado com ele por sua irmã, o curta encena essa busca das duas crianças (quase três, se pensarmos na irmã adolescente que não é mais achada) por algo que elas não podem dizer bem o que de fato é. O plano final retoma essa perspectiva, marcada pela solidão. A compra de um brinquedo não o transforma (o consumo não é solução de nada), e só resta o caminhar. Em meio disso, o curta mostra aspectos fragmentados da feira local, mas parece que o menino observa tudo a certa distância, sem se envolver ou interagir com o ambiente.

"A Moça que Dançou com o Diabo" não possui a movimentação cênica da feira nem a fragmentação de cenas nem tantos personagens. O estilo é o da contenção. O primeiro plano é quase uma carta de intenções do curta: num quadro totalmente envolto pela escuridão, uma janela se abre, mas vemos não a paisagem ou o céu, mas apenas uma parede de tijolos. Um lento zoom-out nos revela a personagem principal. Os temas do filme se apresentam de forma sutil: o embate entre o interior e o exterior, entre Deus e o Diabo, entre o visível ou o invisível. Ou ainda, no que é o mais cinematográfico dos temas: entre a luz e a escuridão. Ou ainda, entre o silêncio e a voz (a música ou a palavra).

João Paulo parte de uma estrutura cênica minimalista para abordar um tema delicado mas fundamental na sociedade brasileira contemporânea: o fanatismo religioso. A protagonista mantém uma certa distância ambígua do seu entorno. Não é mais uma criança como em "Command Action", mas uma jovem que busca o seu lugar ao mundo. Ou seja, como o menino de "Command Action", ela está à procura de algo desconhecido, e, talvez por isso sejam tão expressivos os closes da protagonista em ambos os curtas. Entre a luz e a sombra, entre Deus e o diabo, entre a voz e o silêncio, essa jovem busca o seu lugar no mundo, mas me parece que se claramente ela não se sente acolhida no berço religioso, a pista de dança, o clube noturno, tampouco parecem lhe oferecer melhor saída.

João Paulo mostra esse distanciamento dos seus personagens principais (crianças, jovens) em relação ao seu entorno, mas ao mesmo tempo possui uma proximidade respeitosa, sem querer julgar aqueles que aderem ao mundo ao qual esses personagens não pertencem. Seus curtas desenvolvem uma pesquisa de composição cinematográfica (isto é, o social nunca é refém de um trabalho de encenação fílmica), mas sem querer fazer um diagnóstico da situação social nem "falar" pelas minorias. Buscam, antes, um clima de sugestão, uma certa angústia desses personagens, mas sem sequer resvalar no melodrama. Sem julgar nem vitimizar os personagens. Buscam mais o registro ficcional do que o hibridismo documental (opção que é diretamente expressa no final fantasioso do último curta). Talvez essa seja a fricção que me interessa nesses dois curtas: como abordar o universo das minorias de um ponto de vista humano, sem querer comprovar teses já prontas. Talvez o cinema de João Paulo seja tão solitário quanto seus personagens. Seu milagre é que Cannes o descobriu, entre mais de 1000 curtas.

Publicado pelo autor no Cinecasulofilia.

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