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Pedro Martins Freire

Cinco Graças (2015), de Deniz Gamze Ergüven


Meio europeu, meio asiático, a Turquia é uma república constitucional democrática, multipartidária, laica e considerada a mais liberal entre os países de sua região asiática e africana de predominância islâmica. No entanto, a sua forte relação com o ocidente parece estar sempre em choque com a sua herança cultural e religiosa. A segregação de gênero continua sendo um problema de distante solução.

É dentro desse universo do estado turco que “Cinco Graças” se desenvolve. Ergüven, inteligentemente, não se interesse nem pelo laico, nem pela política e muito menos pelo religioso. Todos estão ausentes, mas perpassam quase invisíveis e extrema sutileza, pois, afinal, estão impregnadas na sociedade. Não deixando de registrar que a religião predominante no país é o islã, com pequenas minorias de cristãos e judeus. O que Importa a Ergüven, é expor o cerne da sociedade turca: a família e a condição da mulher. E um pequeno instrumento da conscientização se pontua em 2 momentos: no início e no desfecho de sua história.

No início, as cinco irmãs e suas colegas se despedem da professora. É o começo do período de férias. E um inocente banho de mar com os garotos, transformado em denúncia, desencadeia um estado de violência cujo sentido é instaurar, nelas, o medo e a repressão. Elas, as meninas, não pertencem a si mesmas, não são donas de si, mas sim, a uma tradição secular institucionalidade que lhes impõe uma “pureza feminina”. O instrumento utilizado para isso também secular: o isolamento do mundo externo, uma prisão domiciliar.

E é justamente neste estado de claustrofobia que Eugüven põe a sua câmera para vasculhar o ambiente da casa: a intimidade das meninas, desvendando-lhes a inocência; o autoritarismo dos tios, expressando a submissão das mulheres e o reinado machista. Tudo pela necessidade da manutenção da virgindade delas. E, nas sombras da noite, emerge outra sinistra opressão: o assédio sexual, aparentemente com a conivência das tias. Afinal, a “honra” da família firma-se nessa condição feminina secular de submissão. Detalhes que formulam um estado opressão vivido pela mulher turca, ainda em sua infância.

Mas, a obra de Ergüven é rica em detalhes, todos desenvolvidos no interior do estado claustrofóbico. Destaco quatro: a virgindade e a honra das famílias; o teste de virgindade; o casamento infantil; e o assédio sexual no seio da própria família.

Disseminada pela tradição secular, a exigência da virgindade como “status” de honra da família para as relações de casamento, revela Eugüven que essa “carga moral” imposta às meninas está sendo desmoralizada da forma mais ousada possível quando Sonay, a mais velha, revela às irmãs que faz “sexo por trás” com o namorado – e assim se mantém virgem. É uma afronta ao estado turco.

Em 2004, a Suprema Corte do país considerou o sexo oral, anal e homossexual – apontados “que não servem para a reprodução”, como antinaturais, e, por isso, criminalizados. É o típico caso das leis que não valem para nada, iguais a muitas inúteis aqui no Brasil, promovidas para reprimir a sexualidade – já instauradas no âmbito religioso, mas também, agora nos tempos pós-modernos, formalizadas no campo jurídico. Hoje, essa lei, lá, serve apenas para punir os vendedores de obras pornográficas.

Outra situação secular, os “testes de virgindade” se mantêm justamente para o cumprimento da “honra familiar” nos casos considerados “suspeitos” ou para as recém-casadas que não sangrem na noite de núpcias. Ergüven prefere não levar o caso ao ridículo, mas o expõe como uma condição física de determinadas mulheres em não sangrar com a penetração.

Comum na história humana, o casamento infantil, pejorativamente chamado no ocidente de “casamento pedófilo”, por sua vez, é outra sobrevivência secular nos tempos atuais, embora venha sendo eliminado, lentamente, em alguns países, especialmente africanos. E aí, perceba outro aspecto da lei turca levada à cesta do lixo. Juridicamente, as meninas só podem se casar a partir dos 17 anos, mas a lei é violada pela “tradição”, e, também, pela crise econômica que também atinge o país, o que favorece o uso do matrimônio como fonte de “negócios”.

No ano passado, a advogada e ativista da organização Izmir Bar Association Central, Nuriye Kadam, revelou ter detectado através de pesquisa que um terço de todos os casamentos no país envolveram menores idade e que, em 2012, quase 20 mil pais apresentaram pedidos à justiça para que suas filhas com idade inferior a 16 anos fossem liberadas para casar. Segundo Kadam, existem 180 mil meninas-noivas no País. A Turquia tem uma população de 70 milhões.

Por fim, Ergüven trata diretamente da pedofilia no ambiente familiar ao mostrar, de maneira discreta, o assédio sexual que o tio moralista perpetra contra duas das meninas, aparentemente com o silêncio das mulheres da casa. Como revelam as pesquisas, os monstros sexuais encontram no seio das famílias. Quem estiver interessado em saber mais sobre o tema, recomendo a leitura de “Sexualidade no Islã” (Editora Globo, 2006), do tunisiano Abdelwahab Bouhdiba.

Ergüven, conscientemente, coloca a Turquia numa situação de conflito entre a influência do Ocidente, ao assumir uma estrutura democrática, e a resistência à modernidade com a prevalência de suas tradições culturais, cuja força mostra-se capaz de eliminar a legitimidade jurídica. Um país em ponto de cisão entre o pensamento liberal e cristão ocidental e o Oriente islâmico.

E, vai aqui, um necessário “spoiler” para que a minha análise de “Cinco Graças” tenha um fechamento circular: o investimento em educação. Fechando a sua exposição, a cineasta revela a escola como o único caminho viável para a sobrevivência como mulher-livre. A fuga das meninas é muito mais metafórica do que real, e real mesmo, o reencontro com a professora. As mulheres estão provocando uma revolução por dentro da Turquia (e também em outros países islâmicos). Advogadas, ativistas, professoras estão na linha de frente. O efeito é lento, vai levar décadas para obter sucesso, mas o processo da graça da liberdade está em andamento.

Publicado pelo autor no Cinema e Artes.

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