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  • Thiago Henrique Sena

Dossiê 19º Noia: cinema universitário vivo no meio de uma pandemia

Thiago Henrique Sena compôs o Júri da Crítica do 19º Noia - Festival do Audiovisual Universitário

Cena de "Perifericu", curta premiado pelo Júri da Crítica

O 19º Noia - Festival de Audiovisual Universitário aconteceu esse ano de forma on-line devido a pandemia da COVID-19. A seleção de filmes da curadoria mostra um recorte necessário para uma reflexão da nossa realidade atual no Brasil, um país que tem na figura de seus governantes uma clara perseguição aos grupos minoritários e aos direitos sociais.


Desse modo, o júri da crítica da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine), ficou responsável pela a escolha de melhor curta-metragem da Mostra Brasileira de Cinema Universitário. Ao todo, foram 21 filmes distribuídos em três sessões. Embora o cinema cearense estivesse presente com apenas três representantes, o cinema nordestino ainda foi representado com 8 filmes ao total - importante dado para a valorização de um cinema regional e plural produzido no Nordeste brasileiro.


O início deste dossiê tem como objeto de análise o curta-metragem escolhido pelo júri da crítica como melhor filme do festival. Trata-se de Perifericu com direção de Nay Mendl, Rosa Caldeira, Stheffany Fernanda e Vita Pereira. O filme conta com um apreço técnico invejável como produção universitária. Há um esmero em como a sua história é contada, bem como a escolha de técnicas aplicadas, as composições de planos e escolhas da direção, tudo é muito sutil e passa toda a urgência de uma realidade que é comum a muitos cidadãos brasileiros. Ao assistir Perifericu, um filme me veio imediatamente à cabeça: Close-Up de Abbas Kiarostami.


Embora em um primeiro momento o filme do cineasta iraniano e o curta-metragem paulista não travem um diálogo direto, ambos retratam uma realidade que há muito em comum. Por exemplo, tanto Irã quanto Brasil pregam uma perseguição aos grupos minoritários - o país persa o faz de modo aberto através de seu fundamentalismo religioso enquanto o Brasil desfaça sob o manto de uma ilusória proteção do Estado à medida que as estatísticas de violência contra esses grupos só cresce. Desse modo, Perifericu é um filme importante por denunciar uma realidade e por propor uma reflexão, tornando-se um bom exemplo de uma linguagem audiovisual madura e promissora.


Outros temas fazem parte da curadoria do 19º Noia, como o luto e a linguagem experimental. Aliás cabe um parêntese aqui para destacar o excelente trabalho da curadoria que foi capaz de selecionar filmes que dialogam entre si, mas que apresentam características independente e só contribuem para um repertório reflexivo sobre a nossa sociedade.


Dois dos filmes de destaque do festival é Vida dentro de um melão de Helena Frade e oríkì de Pamela Peregrino. O primeiro é uma bela história lúdica sobre a vida e a morte, trata do luto de uma maneira muito singela e bonita. A alternância entre os bonecos e os arquivos é uma linguagem do cinema que particularmente eu gosto. A sensação que tive ao assistir ao curta foi de estar diante de uma poesia de Manoel de Barros “A mãe disse que carregar água na peneira/ era o mesmo que roubar um vento e/ sair correndo com ele para mostrar aos irmãos”, esse mesmo sentimento tive ao ver o curta-metragem Memórias de areia da cineasta cearense Luana Sampaio. Em ambos terminei do mesmo jeito: com lágrima dos olhos.


O segundo filme de destaque é oríkì uma animação que recebe o subtítulo “um filme de quarentena”. Trata-se de um excelente filme sobre a cultura africana intrínseca ao povo brasileiro e que sofre repressão principalmente pelo Estado que se diz laico e por uma parcela da população que ostenta em cima de seu muro de privilégios uma visão racista e eugênica do Brasil. “Animação sobre os Orixás, a cura e a pandemia” é um filme sobre resistência de uma cultura e um importante exemplo de uma linguagem audiovisual que ainda sofre resistência por parte de festivais. É sempre uma satisfação ver animações sendo produzidas e selecionada por festivais de cinema. oríkì é um dos meus filmes de destaque, não apenas do Noia, mas desse longínquo ano de 2020.


Por fim, o “Nesse espelho que é nossa cidade”, de Clara Capelo, é um excelente exemplo de uma linguagem mais contemporânea do cinema cearense. O filme caminha por possibilidades de linguagem sempre dialogando com todas, mas sem a necessidade de se comprometer com alguma. O fluxo narrativo se dilui entre as imagens escolhidas para representar a história. Tematicamente o filme trata de assuntos que merecem uma reflexão, seja por estarmos anestesiados perante a nossa realidade ou por uma falta de percepção devido ao ritmo de vida da sociedade contemporânea. Ao ver o filme da Clara, outro filme do Kiarostami me veio a mente: 24 frames. Não posso afirmar que a cineasta cearense chegou a ver o filme do diretor iraniano, mas acredito que o diálogo entre as obras seja possível, mesmo que nossas realidades estejam muito distantes.


É admirável o esforço da produção do 19º Noia - Festival de Audiovisual Universitário para a realização do evento, mesmo que de forma on-line, em face da nossa realidade de 2020. Também estão de parabéns todos os curtas-metragens e suas respectivas equipes e elencos, primeiro pela coragem e perseverança de se produzir filmes no Brasil, e segundo por apresentarem ao público e à crítica obras que produzem, de uma forma tão bonita, uma reflexão necessária sobre nossa sociedade. O cinema universitário está mais vivo que nunca e com sementes que germinaram um futuro cheio de artistas incríveis.


Um viva e um desejo de muita luta ao cinema brasileiro.


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