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  • André Bloc

A 13ª Emenda (2016), de Ava DuVernay


Liberdade. Justiça. Igualdade. Em pouco mais de dez anos de carreira, a cineasta norte-americana Ava DuVernay já se estabeleceu como uma das mais importantes ativistas negras dentro da arte. Com qualidade impressionante, ela conseguiu encontrar sua voz ao expor o histórico racista e a dívida social dos Estados Unidos com sua população afrodescendente. Se “Selma: Uma Luta Pela Igualdade”, cinebiografia de Martin Luther King, já foi candidato forte de melhor filme norte-americano de 2014, o documentário “A 13ª Emenda” estabelece DuVernay como uma das mais importantes cineastas do século XXI.

Disponibilizado na rede de streaming pago Netflix no dia 7 de outubro, o filme traça um paralelo entre a escravidão de negros e a situação atual dos presos nos Estados Unidos. O foco é uma reconstrução histórica da 13ª Emenda à Constituição dos EUA, que dita que “Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado”. Note-se o grifo. Salvo como punição de um crime.

A partir disso, DuVernay mostra, com um domínio do fato invejável, a história de desigualdade racial dos EUA — bem semelhante àquela que também ignoramos no Brasil. Com um time de fontes lotado de ativistas do direito negro e de cátedras de universidades, a diretora passeia por momentos históricos desde o lançamento da obra-prima racista “O Nascimento de uma Nação” (1915), de D. W. Griffith, até o fortalecimento do movimento “Black Lives Matter” (ou “Vidas negras são importantes”).

Só nesses dois extremos já é possível ver o alcance da obra. Ao falar do filme de 1915, considerado por muitos o primeiro blockbuster do cinema, a diretora mostra o poder da mídia. A obra, adaptada de livro do criador do culto supremacista branco Ku Klux Klan (KKK), retrata o homem negro como, em suma, estupradores criminosos. Com a força imagética do arquivo e depoimentos bem montados, DuVernay mostra o quanto o filme chegou a influenciar até as atitudes da KKK, que viveu um renascimento após 1915.

Acima de tudo, a diretora se preocupa em dar o contexto do racismo e mostrar como o poder público encontrou mecanismos para perseguir negros. A preocupação dos republicanos Richard Nixon (presidente de 1969 a 1974) e Ronald Reagan (presidente dos EUA de 1981 a 1989) em defender a “Lei e a Ordem”, o discurso conservador de Bill Clinton (1993 – 2001) e todo o jogo corporativo para manter o trabalho forçado como política de mercado é apresentada de forma cristalina. É, ao mesmo tempo, uma obra sobre racismo, educação, controle da mídia e anticapitalismo. Ela vai do discurso ativista pelos direitos civis ao escancaramento do cerne corrupto da relação entre empresas e políticos. A parte sobre o Alec, o Conselho Legislativo Americano de Troca, mostra o descaramento da promiscuidade nas relações de empresários e legisladores, o que funciona quase como um prenúncio de propostas de privatização de alguns órgãos estatais no Brasil.

Paralelamente, “A 13ª Emenda” lapida dramas humanos profundos. O rapaz, negro, preso injustamente e que passou três anos encarcerado por se negar a confessar algo que nunca fizera. A ativista que correu o risco de prisão perpétua após ser perseguida por ser negra. O assassinato de Fred Hampton, o carismático líder do Partido dos Panteras Negras, morto aos 21 anos. As mortes recentes de cidadãos afroamericanos, vítimas de violência policial e que estimularam a criação do “Black Lives Matter”. É um mundo de injustiças que criou discrepâncias ilustradas a todo momento por DuVernay.

O documentário, em seus 100 minutos, é quase uma enciclopédia ilustrada. Ele dá um contexto social complexo e, ao mesmo tempo, familiar para o público brasileiro. Afinal, a discrepância lá e cá a população negra é minoria da sociedade como um todo e maioria da população carcerária (segundo o doc, os percentuais são de 9% e 40% nos EUA, respectivamente). “A 13ª Emenda” mostra, ilustra, que não há coincidência. Existe perseguição sistemática, existem projetos para encarceramento em massa, existe um porquê para a população carcerária norte-americana somar mais de 2,3 milhões de pessoas (25% dos presos do mundo, segundo o filme).

Para, digamos, dar liga ao filme, outro acerto de DuVernay. A trilha musical, com nomes que vão de Nina Simone a Public Enemy, entrecorta o drama e mostra a raiva que pulsa nos artistas negros. Dessa forma, o filme mostra um cardápio diversificado de talentos que ultrapassa gerações e estilos (jazz, rap, rock, blues, etc), mas sempre com uma temática recorrente.

Se a produção exclusiva da Netflix é, até hoje, mais pop e acessível, com “A 13ª Emenda” o serviço mostra que é capaz de ousar e investir em quem tem algo a dizer. Ava DuVernay representa a comunidade, o movimento negro. Ela diz aquilo que você (ou eu), cheio de privilégios brancos, nem sabia que precisava ouvir.

Publicado pelo autor no Blog Cinema às 8 / O Povo Online.

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